Thursday, August 31, 2006

O Perfume de Rachel

O Perfume de Rachel

De um jeito meio atabalhoado, vim morar perto do mar. Precisei de um lugar mais amplo onde pudesse acolher minha filha que saia apressada com bebê e babá de um casamento mal sucedido. O prédio surrado, faixada inspirada em estilo art déco, pareceu-me a solução. Mas, o que não vi na curta visita com o moço da imobiliária, ficou claro na permanência dos primeiros dias: infiltrações na cozinha, portas sanfonadas nos banheiros que era o mesmo que não haver porta alguma. Nem a varanda, diga-se simpática, me conquistou. A rua invariavelmente emporcalhada eu também detestei. Durante quase um ano foi o barulho infernal da obra do prédio ao lado. De noite, é a balbúrdia dos lixeiros e o ronco do caminhão do lixo. É quando o cheiro do peixe servido nos restaurantes da orla funde-se ao fedor do peixe do lixo a se acumular nas calçadas, insólita alquimia de odores a invadir a intimidade da casa.
Na primeira semana, ficou claro que eu me equivocara na escolha. Já em pleno arrependimento, lembrei-me de que Clarice Lispector morou neste bairro. Fiquei toda animada com a possibilidade de ter sido exatamente no apartamento que acabara de alugar, fantasia que minhas pesquisas não confirmaram. O prédio ficou então resumido à insignificância de uma edificação mal cuidada, cujo estilo, em verdade, pode ser definido como art de cocô.
Certo dia, aqui por perto, encontrei a Rachel Gutiérrez. Eu já pensava em Clarice quando ela me puxou pela mão e disse:

- Venha ver uma coisa. Será rápido. Sabes que Clarice Lispector morou aqui...
- Sim, sei... Tudo o que eu queria era que tivesse sido onde moro... Ali...
- Não, não foi ali. Vamos lá... Mostro-te onde foi. Consegui convencer o Síndico e a Prefeitura da importância de colocar uma placa com o registro histórico da passagem de Clarice pelo bairro.
- E o que você não consegue com essa sua determinação de mulher gaúcha?
Na portaria do prédio, bem à vista dos passantes, lá está a inscrição:


“A palavra é a minha quarta dimensão”

Clarice Lispector
1920-1977

“Consagrada entre os grandes escritores do século XX, publicou crônicas, contos e romances.
Morou neste prédio de 1966 a 1977.”

Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
Secretaria de Cultura
Departamento Geral de Patrimônio Cultural

1996

Passou-se o tempo e nunca mais encontrei a autora da homenagem.
Noutro dia, aparece-me um advogado a requerer algo indeferível, apresentando-se como primo de Rachel, que, segundo ele, era minha e amiga e vizinha e havia falecido. Como!? Falecido!? Não pensei em outra Rachel que não fosse a Gutiérrez. Que disparate estaria o homem a dizer e eu a pensar? Tornou-se então urgente ter notícias de minha companheira de aventuras feministas, Rachel, pianista, poeta, escritora, tradutora, estudiosa da obra de Clarice Lispector.
Para meu alívio, a notícia não tardou. Passados uns dias do papo sinistro, lá vejo a Rachel toda viçosa, entre frutas e hortaliças na feira de nossa rua. Tivemos uma conversa rápida, nos limites da eventualidade de nossos encontros.
“Feira é cultura”, saiu-se com essa o feirante! Sim, é cultura e palco de esclarecimento de histórias obscuras, complementei.
Cada uma de nós seguiu o rumo dos respectivos afazeres. Mas o perfume de Rachel me ficou na face pelo resto da manhã, a lembrar o quanto é bom estar viva e com saúde, perto do mar ou em Brás de Pina.

Rio, 31 de agosto de 2006

Friday, August 11, 2006

Lua de Agosto

Nem um traço faltava para completar o desenho de sua forma exata.
A Lua Cheia de hoje fez décor para o caminho de volta ao Rio de Janeiro.
Brilhou num céu ainda tão claro, sem sinal de estrelas, que parecia ter se antecipado à noite, confundindo o crepúsculo, insistindo na permanência da tarde. Nada mais que a plenitude da Lua acontecia na Linha Vermelha. Ninguém sangrou. Caminhamos em paz porque a Lua íntegra fez-se estrela-guia. E do céu assim tão enfeitado vinha uma esperança de dissipar desalentos.

Rio, 8 de agosto de 2006