Circula no facebook “petição para a extinção dos privilégios
abusivos dos juízes brasileiros”. Minha adesão foi solicitada, mas não devo
assinar, pois não concordo com a totalidade
dos pontos listados no pleito, tidos como “privilégios abusivos” da
magistratura.
Não tenho dúvida de que em todas as
esferas do Estado há privilégios a serem podados. Mas uma coisa é abolir privilégios,
punir condutas lesivas quando provadas as suas práticas por agentes de Estado –
Executivo, Legislativo e Judiciário. Outra coisa é atacar a magistratura sem
conhecimento da estrutura do Estado e, assim, confundir princípios estruturantes
da Justiça com privilégios – uma investida que, lamentavelmente, resulta em
ataque ao Estado Democrático de Direito que tem no juiz o seu pilar essencial.
A maioria dos juízes age com
responsabilidade, apesar das precárias condições de trabalho. Uma coisa são os abusos
praticados em Tribunais superiores, embora também não se possa generalizar e colocar
todos os desembargadores na mesma legião dos que ambicionam privilégios. Outra
coisa são as Varas onde atuam os magistrados de primeiro grau em contato direto
com o povo, ouvindo o povo, compondo conflitos de toda ordem em garantia da paz
social. A Justiça de primeiro grau é o coração do Poder Judiciário. E não é
justo que os juízes de primeiro grau – a maioria dos juízes brasileiros, os que
dão o máximo de si em prejuízo da saúde e, não raro, da própria vida – sejam colocados
no mesmo saco dos malfeitores encontráveis nas três esferas dos poderes de Estado.
Não acho justo sustar o pagamento dos
atrasados relativos ao auxílio-alimentação, tanto a juízes como a servidores, se
tal direito teve a sua legalidade acolhida e declarada. A propósito, esclareça-se que o exercício da magistratura confere
aos juízes responsabilidades maiores em relação aos servidores. Responsabilidades
que demandam a estruturação da carreira com base nas garantias constitucionais
da imparcialidade, da vitaliciedade e da inamovibilidade. Esta última, de
caráter mais prático a permitir comentário num artigo breve, protege o
exercício da Justiça dos interesses políticos e econômicos que pretendam afastar
o juiz de sua jurisdição para impedi-lo de julgar determinado caso.
Quanto às férias de 60 dias, se isto
outrora nasceu como um privilégio – admita-se - hoje opera em favor dos que precisam
da Justiça e não devem ser penalizados pelas negligências do Legislativo e do
Executivo, quanto à necessidade de ampliação da rede de serviços judiciários. Na
verdade, a maioria dos magistrados hoje utiliza metade ou mais dos seus 60 dias
de férias para colocar o trabalho em dia, quer dizer, atender ao estupendo volume
da demanda. Em comparação com outros países, o Brasil guarda uma das piores proporções
entre o número de magistrados e o número da população. Desde a Constituição de
1988, vem se elevando o número de ações na Justiça, sem que se tenha ampliado
na mesma proporção o número de Varas e Tribunais. A verdade é que as deficiências
do aparelho judiciário quase sempre são amenizadas pela consciência do juiz. Imagine-se
o que aconteceria hoje se a maioria dos juízes passasse a trabalhar no limite
de uma jornada de 44 horas semanais e com férias de 30 dias? Em poucos meses,
ocorreria um brutal engarrafamento de processos e sequer seria possível
circular no interior das Varas. Por sorte, a maioria age e trabalha em nome do compromisso
firmado com o Estado, com a sociedade. O juiz que vai ficando até mais tarde, ao
contrário dos servidores judiciários que desobrigam-se das tarefas ao término
da jornada legal. O juiz que leva trabalho para casa, elastecendo em muito a
sua jornada, por pura questão de zelo e consciência. O juiz que dirige longas
sessões de audiências e depois vai examinar
os processos e proferir despachos. Falo da memória de meu tempo de atividade
como juíza do trabalho de primeiro grau, como assim me aposentei. Falo em nome da
maioria que recusa o regime dos privilégios.
Muitos se queixam do valor da remuneração
dos juízes. Mas talvez não saibam que a Constituição proíbe ao juiz de exercer
quaisquer outras atividades remuneradas, salvo o ensino jurídico e, mesmo
assim, vedada a ocupação em cargo de direção nas universidades. Para os cargos
do Executivo e do Legislativo, tal exigência não existe, tanto é que muitos agentes
do Executivo e do Legislativo, estes sim, por terem trânsito livre no mundo dos
negócios, acabam por adotar como princípio a promiscuidade entre o público e o
privado, em benefício do próprio enriquecimento às custas do cargo ou mandato
exercido.
A minoria que hoje impropera contra a
remuneração e demais direitos da magistratura talvez não esteja atenta ao fato
de que, no mercado de trabalho em geral, os cargos executivos de alta
responsabilidade (que de longe se comparam ao do juiz) costumam ser remunerados
com valores superiores. Alguém se interessará por se preparar e ingressar na magistratura,
com toda a exigência que a carreira impõe, a troco de remuneração irrisória? A pergunta
que ainda cabe é a seguinte: a quem interessa juízes mal pagos e sem as
garantias constitucionais que ainda delineiam o ofício como carreira de Estado?
Alimentar uma pregação generalizada contra “os juízes brasileiros”, creio, equivale
a favorecer, indiretamente, pretensões que de fato existem de tirar a Justiça
do âmbito do Estado, talvez privatizá-la, como se vem fazendo com a Educação e
a Saúde, relegando-a, enfim, a uma atividade qualquer do mercado de trabalho. Quem
hoje, por ingenuidade ou falta de informação, agride a magistratura está a dar vários
tiros nos próprios pés, pois, sem uma Justiça independente, imparcial e
amparada em princípios tais como os vigentes na Constituição não haverá democracia.