Em certos círculos, tanto se elogia “Aquarius”
que deixei o Alberto para trás e fui ver o filme num cinema perto de casa,
sessão da tarde. Aprendi com a escritora Carmen da Silva a desafiar consensos,
sem medo de ser criticada e enquadrada em algum clichê de posicionamento
ideológico. E, assim, sem medo de apedrejamento, afirmo com toda minha sinceridade:
não vi no filme de Kleber Mendonça Filho, algo mais que um trabalho razoável.
Não percebo o sentido revolucionário que se vem atribuindo à obra. A manifestação
na noite da escolha – o cartaz remissivo à conjuntura política brasileira – foi
gesto de livre direito do elenco e direção. Porém, não se relaciona diretamente
com o conteúdo da obra.
Talvez o meu pecado tenha sido passar
pelos meus vinte anos de idade, a década de 1960, assistindo filmes
absolutamente geniais. Foi um tempo tão precioso do cinema cult que se torna impossível avaliar o que veio depois, o que se
faz hoje, sem traçar paralelos. Por mais aberta que esteja a mente para receber
o que há de novo, há uma história a moldar o meu olhar sobre a arte, a alimentar
minha visão crítica.
Fiquei atenta ao filme, aos seus detalhes,
como fazia naqueles mencionados tempos em que os filmes contavam muito para a nossa
formação cultural, acadêmica e também política. E como foi bom fazer prova da cadeira
de Literatura Brasileira, sendo mestre o professor Ivo Barbieri, depois de ter
visto “A hora e a vez de Augusto Matraga”, de Roberto Santos (1966), inspirado
em novela de João Guimarães Rosa! O cinema nacional era de uma pujança artística
digna de “bonequinhos” de pé em calorosos aplausos. E o que dizer de todo o
cinema italiano, o francês, o sueco, o alemão, espanhol...? Sim, o meu “bonequinho”
carrega essas vivências.
“Aquarius”, em ritmo às vezes
arrastado, retoma um tema forte nos anos 1970: o assédio de empreiteiras aos
proprietários de imóveis plantados em terrenos de alto interesse imobiliário
nas cidades mais bonitas do Brasil. Em 1974, a TV Globo apresentou a novela “O
Espigão”, de Dias Gomes, exibida na faixa das 22 horas, que abordou a questão
da expansão imobiliária desenfreada e a resistência dos proprietários do
terreno cobiçado. Teve uma ótima recepção de audiência.
Em Recife, onde se passa a ação do
filme, pode ser que tal assédio ainda ocorra de modo expressivo. Na cidade do
Rio de Janeiro, pode-se afirmar que todas as casas e pequenos prédios visados
já tenham sido derrubados. De fato, essa é uma guerra difícil de ganhar. E não
só por questão de vontade e determinação. Salvo, talvez, em casos em que a
vontade e a determinação tenham assumido o caráter de uma luta coletiva, de uma
ação política. Tenho remotas lembranças da atuação de associações de moradores
da Zona Sul em defesa dos interesses nas áreas cobiçadas, em apoio aos
moradores .
O filme não politiza o tema por este
aspecto da mobilização coletiva. O conflito se afigura entre ações privadas: de
um lado, a violência do assédio da empreiteira e, de outro, a força individual
de Clara, a moradora que resiste a sair de sua casa, até porque, segundo os
diálogos, tem boa situação financeira, é proprietária de cinco apartamentos, de
fato, não precisa aceitar a proposta financeira da empresa. A pressão do
empreiteiro assume caráter criminoso quando infesta o prédio de cupins (Clara é
a única moradora a resistir, as demais unidades já teriam sido vendidas à
empresa). O tema da resistência é, pois, deixado em aberto na cena final do filme,
em que Clara esparrama as toras tomadas pelo cupim na mesa do empreendedor,
ameaçando-o com a denúncia de algo por ele feito no passado, sem que se revele
do que se trata. Interessante estampar o
conflito entre direitos individuais vinculados à propriedade, de um lado o
poder do capital e de outro o sentimento, a escolha, o desejo de uma só pessoa.
Sem dúvida, interessante. Mas não o bastante para se ter em “Aquarius” um
filmaço.
A meu ver, há no filme outra linha
temática, por assim dizer, que é a Sonia Braga. Senti “Aquarius” como uma
homenagem a ela, à sua beleza e ao modo bacana como ela vem envelhecendo. Algo
motivador para todas as mulheres? Talvez. Conheço a Sonia não personagem de entrevistas
publicadas nos últimos anos, inclusive as mais recentes, relacionadas à divulgação
do filme. Penso que seja intencional a construção da personagem Clara a partir
da caracterização da própria atriz, Sonia. Aí, vejo a homenagem. A personagem poderia
se chamar “Sonia”, de tão Sonia Braga que parece ser, no jeito, no modo de
falar exposto nos diálogos do filme.
A história começa na festa de aniversário
de 70 anos de uma tia, em 1980, ao que parece, referência para Clara de uma
mulher especial, ousada, que ainda pensa forte em sexo entre a criançada da
festa – o que se vê nos feedbacks de
cenas de sexo que lhe ocorrem durante a homenagem que lhe é prestada. Faz sentido
com a cena em que Clara manda vir o moço com o qual faz um sexo arretado e
livre. Bacana.
A cena do macho que, no auge do
desejo, recusa a mulher ainda bela e sedutora que ali revela a falta do seio por
ação do câncer é um detalhe tocante que também passa a idéia: “se resisti ao
pior – a doença – por que não resistir ao assédio do capitalista sobre o meu o
meu universo particular, onde tenho a minha coleção de long plays, a minha
praia, o meu amigo salva-vidas (Irandir Santos)”?
Desejo sucesso a “Aquarius”. Mas,
invocando a liberdade de opinião, não vejo no filme a excelência toda que lhe vem
sendo atribuída.