Monday, September 26, 2016

"Aquarius", uma crítica fora da ordem...

Em certos círculos, tanto se elogia “Aquarius” que deixei o Alberto para trás e fui ver o filme num cinema perto de casa, sessão da tarde. Aprendi com a escritora Carmen da Silva a desafiar consensos, sem medo de ser criticada e enquadrada em algum clichê de posicionamento ideológico. E, assim, sem medo de apedrejamento, afirmo com toda minha sinceridade: não vi no filme de Kleber Mendonça Filho, algo mais que um trabalho razoável. Não percebo o sentido revolucionário que se vem atribuindo à obra. A manifestação na noite da escolha – o cartaz remissivo à conjuntura política brasileira – foi gesto de livre direito do elenco e direção. Porém, não se relaciona diretamente com o conteúdo da obra.
Talvez o meu pecado tenha sido passar pelos meus vinte anos de idade, a década de 1960, assistindo filmes absolutamente geniais. Foi um tempo tão precioso do cinema cult que se torna impossível avaliar o que veio depois, o que se faz hoje, sem traçar paralelos. Por mais aberta que esteja a mente para receber o que há de novo, há uma história a moldar o meu olhar sobre a arte, a alimentar minha visão crítica.
Fiquei atenta ao filme, aos seus detalhes, como fazia naqueles mencionados tempos em que os filmes contavam muito para a nossa formação cultural, acadêmica e também política. E como foi bom fazer prova da cadeira de Literatura Brasileira, sendo mestre o professor Ivo Barbieri, depois de ter visto “A hora e a vez de Augusto Matraga”, de Roberto Santos (1966), inspirado em novela de João Guimarães Rosa!   O cinema nacional era de uma pujança artística digna de “bonequinhos” de pé em calorosos aplausos. E o que dizer de todo o cinema italiano, o francês, o sueco, o alemão, espanhol...? Sim, o meu “bonequinho” carrega essas vivências.   
“Aquarius”, em ritmo às vezes arrastado, retoma um tema forte nos anos 1970: o assédio de empreiteiras aos proprietários de imóveis plantados em terrenos de alto interesse imobiliário nas cidades mais bonitas do Brasil. Em 1974, a TV Globo apresentou a novela “O Espigão”, de Dias Gomes, exibida na faixa das 22 horas, que abordou a questão da expansão imobiliária desenfreada e a resistência dos proprietários do terreno cobiçado. Teve uma ótima recepção de audiência.
Em Recife, onde se passa a ação do filme, pode ser que tal assédio ainda ocorra de modo expressivo. Na cidade do Rio de Janeiro, pode-se afirmar que todas as casas e pequenos prédios visados já tenham sido derrubados. De fato, essa é uma guerra difícil de ganhar. E não só por questão de vontade e determinação. Salvo, talvez, em casos em que a vontade e a determinação tenham assumido o caráter de uma luta coletiva, de uma ação política. Tenho remotas lembranças da atuação de associações de moradores da Zona Sul em defesa dos interesses nas áreas cobiçadas, em apoio aos moradores .
O filme não politiza o tema por este aspecto da mobilização coletiva. O conflito se afigura entre ações privadas: de um lado, a violência do assédio da empreiteira e, de outro, a força individual de Clara, a moradora que resiste a sair de sua casa, até porque, segundo os diálogos, tem boa situação financeira, é proprietária de cinco apartamentos, de fato, não precisa aceitar a proposta financeira da empresa. A pressão do empreiteiro assume caráter criminoso quando infesta o prédio de cupins (Clara é a única moradora a resistir, as demais unidades já teriam sido vendidas à empresa). O tema da resistência é, pois, deixado em aberto na cena final do filme, em que Clara esparrama as toras tomadas pelo cupim na mesa do empreendedor, ameaçando-o com a denúncia de algo por ele feito no passado, sem que se revele do que se trata.  Interessante estampar o conflito entre direitos individuais vinculados à propriedade, de um lado o poder do capital e de outro o sentimento, a escolha, o desejo de uma só pessoa. Sem dúvida, interessante. Mas não o bastante para se ter em “Aquarius” um filmaço.
A meu ver, há no filme outra linha temática, por assim dizer, que é a Sonia Braga. Senti “Aquarius” como uma homenagem a ela, à sua beleza e ao modo bacana como ela vem envelhecendo. Algo motivador para todas as mulheres? Talvez. Conheço a Sonia não personagem de entrevistas publicadas nos últimos anos, inclusive as mais recentes, relacionadas à divulgação do filme. Penso que seja intencional a construção da personagem Clara a partir da caracterização da própria atriz, Sonia. Aí, vejo a homenagem. A personagem poderia se chamar “Sonia”, de tão Sonia Braga que parece ser, no jeito, no modo de falar exposto nos diálogos do filme.   
A história começa na festa de aniversário de 70 anos de uma tia, em 1980, ao que parece, referência para Clara de uma mulher especial, ousada, que ainda pensa forte em sexo entre a criançada da festa – o que se vê nos feedbacks de cenas de sexo que lhe ocorrem durante a homenagem que lhe é prestada. Faz sentido com a cena em que Clara manda vir o moço com o qual faz um sexo arretado e livre.  Bacana.
A cena do macho que, no auge do desejo, recusa a mulher ainda bela e sedutora que ali revela a falta do seio por ação do câncer é um detalhe tocante que também passa a idéia: “se resisti ao pior – a doença – por que não resistir ao assédio do capitalista sobre o meu o meu universo particular, onde tenho a minha coleção de long plays, a minha praia, o meu amigo salva-vidas (Irandir Santos)”?     

Desejo sucesso a “Aquarius”. Mas, invocando a liberdade de opinião, não vejo no filme a excelência toda que lhe vem sendo atribuída. 

Tuesday, September 06, 2016

Menos slogans, mais pensamento crítico

Responsabilidade - palavra que encerra uma ideia fácil de entender. Mesmo assim, fui aos dicionários. Adoro conferir nos dicionários! Escolho o Houaiss que a define em três acepções:
"1. obrigação de responder pelas ações próprias ou dos outros;
2. caráter ou estado do que é responsável;
3.dever jurídico resultante da violação de determinado direito, através da prática de um ato contrário ao ordenamento jurídico."
Triste um país em que a irresponsabilidade deixa de ser natural na infância, passageira na adolescência, para chegar à fase adulta desnaturada, transmutada num baita vale-tudo. Um vale-tudo desestruturante no pior dos sentidos.
Triste um país em que a irresponsabilidade é praticada por agentes políticos e de Estado com seus poderes decisórios sobre nossas vidas. Irresponsabilidade que se apresenta em bandeiras de todas as cores, engessadas na pobreza dos slogans - "fora tudo o que aí está". Slogans muitas vezes antagônicos só na aparência. Prova disso foi a martelada desferida pelo Senado, contra o artigo 52 da Constituição vigente, patrocinada pela articulação concentrada nos 20 votos contrários ao impeachment somados aos 16 votos, com predominância do PMDB, para cindir o texto da norma, quando a sua dicção traduz um todo indivisível. Se digo: "fui à feira com Alberto". É possível formar-se a ideia de que fui à feira sozinha? Não, não é. Mas o que não fazem os detentores de mandatos parlamentares para cumprir seus projetos cada vez mais distanciados dos interesses do povo?
É bom lembrar que o Temer só aí está porque seu retrato lá estava na urna eletrônica ao lado de Dilma. Ah, tá: o lema agora é "todos juntos somos fortes para fechar as portas das investigações da Lava-Jato e afins". O embuste do confronto entre o PT e o PMDB que é também de Cunha salta aos olhos! Só não vê quem se aprisiona na superficialidade dos slogans, em prejuízo do pensamento crítico do qual depende o nosso futuro.
Posso estar enganada, mas não vejo solução fora da ordem jurídica e do Estado de Direito Democrático bem desenhado na Constituição. Com todo respeito ao pensamento dos companheiros e companheiras, não fui para a luta armada. Nem teria deixado de assinar a Carta de 1988. Os que me conhecem daquele tempo, da militância no PCB, talvez não se espantem com meu pensamento.
Hoje, diante de tantas perplexidades - muito mais dúvidas do que certezas e slogans - só gostaria de saber o que pensa o povo. E me refiro à turma que trabalha duro, enfrenta horas na condução para chegar ao trabalho e voltar para casa - e os vejo exaustos, com feições apreensivas no vai e vem do metrô, desembarcando em massa na estação Central do Brasil para pegar a linha férrea - homens e mulheres que respondem por seus filhos, seus netos e se desdobram para que eles tenham o melhor... Penso nos que sofrem nos grotões onde as benesses populistas sequer chegam.E não posso deixar de pensar no destino de tantos que confiaram nos fundos privados de pensão, hoje ameaçados por um dos golpes mais suntuosos do sistema construído sob o pilar da mais perversa irresponsabilidade.


Wednesday, August 17, 2016

Recital de Kaufmann: é ponto para São Paulo!

O evento olímpico que enobrece a cidade do Rio de Janeiro bem seria propício à abertura das portas de nosso Theatro Municipal à apresentação do tenor alemão, Jonas Kaufmann, a quem fãs de todo o mundo concedem indiscutível medalha de ouro.  Mas, na categoria música clássica e ópera, a cidade está bem longe de chegar ao bronze. A anunciada turnê de Kaufmann pela América Latina contemplou as cidades de Buenos Aires, Lima e São Paulo. Palmas ao “Mozarteum Brasileiro” pela inclusão do concerto do tenor em sua programação comemorativa dos 35 anos de atividades musicais.

A Sala São Paulo resulta da restauração da estação ferroviária “Julio Prestes” para uso da Orquestra Sinfônica de São Paulo. A iniciativa foi do Governador Mario Covas ao final dos anos 1990. “O projeto da Sala São Paulo é um exemplo vivo no qual acústica e arquitetura fundem-se num único corpo que é a própria sala. Tudo é acústica e tudo é arquitetura”, observa José Augusto Nepomuceno, consultor de acústica do projeto de restauro e readequação da Sala São Paulo (vide site da instituição). E como foi bom viver a experiência estética proporcionada por aquela acústica, por aquela arquitetura – corpo único perfeitamente adequado à papa fina oferecida por Kaufmann e seu mestre, o pianista Helmut Deutsch: par perfeito para a execução do lied (palavra alemã de gênero neutro que significa canção) em que voz e piano se acasalam para expressar os sentimentos exaltados pelos compositores, predominantemente, a turma do romantismo alemão.

Em programa muito bem bolado não faltou a essência do lied em peças de Franz Shubert e Robert Schumann e, quanto a este, reafirma-se minha convicção: tudo o que escreveu é sublime e lindo. E não poderia faltar Strauss (o Richard) com que Kaufmann fechou o programa. Os “Três sonetos de Petrarca S.270”, do húngaro Liszt, agregaram ao repertório o idioma italiano que reapareceria na sessão do bis, com as esperadas árias de ópera. Amei as quatro canções do francês Henri Duparc (1848-1933), minha mais nova e deliciosa descoberta musical.

Penso que no Rio de hoje não temos uma sala à altura do brilho de tais artistas e dos naquela noite compositores interpretados. A cada vez que vou ao Municipal, mais me convenço de que a última reforma empreendida prejudicou a acústica do teatro.  O concerto assistido na Sala São Paulo soa-me, assim como m alívio: não estou ficando surda.    

Faz tempo não via uma platéia tão chique e também tão contida, fria, melhor dizendo. Respeito à pureza do lied ou mero excesso de elegância a reprimir a espontaneidade da burguesia paulistana? Imagino que no Municipal do Rio, Kaufmann seria mais calorosamente recebido, como foi neste último fim de semana no Colón de Buenos Aires, em que apresentado programa idêntico. Seremos nós, os cariocas e os portenhos, burgueses ou não, naturalmente mais descontraídos?  

Mas o excesso de elegância ou de reverência a conter o público naquele recital não resistiu à sessão do bis, tal como conduzida por Jonas e tal como recebida por suas fãs, verdadeiras “walkirias” a abandonar rapidamente seus assentos, a se posicionar estrategicamente junto ao palco. Chegara o momento da ópera e das liberdades cariocas a temperar a frieza aristocrática daquela platéia. Ele nos brindou com a ária “l’anima ho stanca”, de Adriana Lecouvreur (Cilèa), com “Recondita armonia”, da Tosca (Puccini). E teve a canção “Azulão” (Ovalle/Bandeira), peça padrão de recitais de astros estrangeiros, como se fosse a única “lied” brasileira, sem demérito de sua beleza.    

É claro que eu integrava a legião das “walkirias”. Foi quando me dei conta - ele ali tão próximo - era a oportunidade de mostrar minha tatuagem que lhe diz respeito, feita depois que o vi em Nova York, em 2014. Puxei a manga de meu casaco chique de concerto, apontando a ele a frase: “Jonas, mein Sänger”. A mulherada, paulistas inclusive, cercava-me para saber o que eu havia mostrado a ele. Que “Brünhilde” era essa a atrair para si o olhar de “Wotan”? Ele sorriu como quem diz: “ah, essas mulheres!” O mais fica por conta de sua imaginação e de suas perplexidades quanto aos gestos – digamos – ousados das mulheres, inclusive daquelas que nem os cabelos brancos as impedem de expressar seus sentimentos. A farra do bis fechou a noite com chave de ouro. Viva a beleza do lied, viva “Jonas, meu cantor”!


https://www.youtube.com/watch?v=JgkwzM9fMXA 

Monday, March 21, 2016

A mediação e os caminhos da paz


Nada é tão ruim que não possa ficar melhor, parafraseando a ideia contida no dito popular para positivá-la. Por mais de quarenta anos, segui carreira jurídica abrigada na litigiosidade. Seja na advocacia tradicional submetida à obrigação de defender o interesse da parte assistida, usando de todos os meios legítimos, éticos, legais e necessários para obter a sentença judicial favorável. Seja no tempo do exercício da magistratura trabalhista, cumprindo a prestação jurisdicional do Estado devida às partes litigantes, “batendo o martelo” sobre o ponto em conflito, o que pela natureza do ato, envolve sempre desagradar, ainda que parcialmente, a uma das partes situadas em pólos opostos. Hoje, uma nova perspectiva dá alento à minha força de trabalho: refiro-me à mediação como forma alternativa de resolução de conflitos, prática que por aqui chega como novidade – embora assim já não seja em outros países, como a vizinha Argentina, onde sua prática bem se expandiu nas últimas décadas.

A mediação, enfim, firma-se nos termos da lei como antídoto ao excesso da litigância presente nas salas de Justiça do Brasil. O novo Código de Processo Civil (Lei 13.105 de 16 de março de 2015) incorpora a mediação como etapa do processo judicial (artigos 165 a 175). Não é de hoje, a conciliação vigora na lei processual e na prática dos juízes. A Justiça do Trabalho foi pioneira a partir da CLT que desde 1943 fixou a conciliação como etapa obrigatória do processo. A mediação ora introduzida na lei processual vai além. O mediador não se confunde com a figura do Estado/Juiz. A prática da mediação não se restringe aos profissionais em Direito. Tampouco demanda titulação acadêmica. O mediador funciona como um facilitador da comunicação entre as partes, do que pode ou não resultar a resolução do conflito. Para tanto, deve conhecer e dominar o manejo de ferramentas através de capacitação específica. Ferramentas que ao Juiz é vedado aplicar.

O ponto de partida da mediação – um procedimento oral e informal - é o acatamento do princípio da voluntariedade: só há mediação com a plena concordância das pessoas envolvidas. O procedimento pode ser interrompido ou cancelado em qualquer parte de sua etapa. O resgate da comunicação rompida é um dos objetivos principais no procedimento de mediação, cabendo ao mediador trabalhar tal aspecto, presente em quase todos os casos vivenciados. Por que escrevo “vivenciados” e não examinados ou apreciados? Porque o mediador, ao contrário do Juiz, não aprecia nada, não “examina os autos”, nem “chama o feito à ordem”. Mesmo na mediação judicial os autos não vêm ao mediador e o juiz do processo não será informado do que foi dito nas sessões de mediação (princípio da confidencialidade).

Na mediação, visa-se, igualmente, celebrar a chamada escuta ativa, uma abordagem essencial ao verdadeiro diálogo que precisamos resgatar para melhor viver em sociedade, para buscar sentimentos de humanidade perdidos no império do grosseiro em que se transforma a realidade. De tal modo, os conflitos passam a ser tidos como eventos inerentes ao fluxo da vida. Separa-se a noção de conflito da noção de litígio. Visa-se o reposicionamento dos interesses das pessoas envolvidas, do qual podem surgir as soluções do conflito. Apresenta-se às pessoas uma alternativa ao “ganha-perde” inevitável na esfera da litigiosidade judicial, para ajudar-lhes a construir uma pauta objetiva a ser examinada, do que pode surgir uma solução genuinamente consensual. O resgate da comunicação interrompida é, pois, o vetor do procedimento, por meio do qual se chega ou não ao acordo que, de certa forma, passa a ser secundário se comparado ao efeito transformador da relação que se pode obter através da escuta ativa e da substituição da guerra de posições pelo exame dos interesses e necessidades dos envolvidos. Nada deve ser forçado pelo mediador. A vontade das pessoas é soberana durante a mediação.  

Evidentemente que o Poder Judiciário lá está – deve estar - ao alcance de todos, como forma constitucional de solução de conflitos. E o vemos cada vez mais se aproximar das exigências de uma nova agenda republicana efetivamente condizente com o princípio do Estado de Democrático de Direito fundado em nossa Constituição. A mediação jamais o substituirá. Apenas acena com a possibilidade alternativa de exame dos conflitos com base na recuperação da comunicação entre as partes, de modo a se evitar as obrigatórias delongas dos trâmites processuais e, sobretudo o peso da sentença judicial à qual é inerente o resultado “ganha-perde”. A mediação, ao contrário, não só pode criar um atalho seguro à solução do conflito, como também pode levar as pessoas envolvidas a escolhas refletidas, caminho andado para a transformação de sua percepção sobre o conflito. Libertas da lógica da contenda, as pessoas passam a tratar objetivamente do problema que as colocou em situação antagônica. A mediação é o terreno em que as partes exercem autonomia na busca de solução de seus conflitos a partir do foco em suas necessidades e interesses, pelo qual se pode chegar sem maiores sofrimentos ao um acordo efetivamente pacificador.

Esta forma alternativa de enfrentamento de conflitos deve contar com a colaboração dos advogados. Na forma extrajudicial, as partes poderão ser assistidas por advogados ou defensores públicos (art.10, da Lei 13.140, de 26 de junho de 2015, que dispõe sobre a mediação). Na mediação judicial, as partes deverão ser assistidas por advogado ou defensores públicos, ressalvadas as hipóteses previstas nas Leis 9.099/95 e 10.259/2001, no limites de que dispensam tal assistência nos juizados especiais.    

Outro aspecto importante a ser ressaltado: o acordo resultante da mediação será reduzido a termo e constitui título executivo extrajudicial. Quando homologado em juízo, ganha a eficácia de título executivo judicial, quer dizer, uma vez descumprida cláusula ou condição do acordo, a parte interessada poderá dar inicio à execução em juízo, sem que se volte ao exame dos temas fixados no termo.

Os estudos teóricos e a experiência prática em minha formação como mediadora abrem-me a mente para perspectivas verdadeiramente inovadoras no que diz respeito ao lidar com os conflitos inerentes à condição humana, tais como me foram apresentados na seara da Justiça. É preciso reaprender a lidar com eles, levando em conta a relativização da via judicial. O apego arraigado à utilização da Justiça não se mostrou eficiente no sentido da pacificação de nossa sociedade. Perdemo-nos no excesso de litigiosidade. A mediação nos oferece alternativas a este padrão. Para tanto, as linhas retas e rígidas do processo judicial são substituídas pela proposta de resgate da comunicação e de um exame franco do que seja o problema. É preciso separar a pessoa do problema, como afirma Willian Ury, da Escola Linear de Harvard. Assim, aprender a mediar é um processo de envolvimento com a proposta de pacificação dos conflitos a partir do reconhecimento de sua objetividade. E me vejo a cada manhã mediando com meus conflitos da vez. E tento abrir o diálogo entre as tantas partes de que sou feita, tentando ver o que se esconde nas fissuras da alma e do corpo, para viver o dia que, a cada esquina, me colocará frente a conflitos de todo gênero, internos e externos, mais simples e mais complexos, todos, porém inerentes ao fato de que estou viva, estou em sociedade e trezentos e sessenta e cinco mil coisas não dependem de mim, de minha posição, de minha vontade. Então, que todos os conflitos - os meus, os teus e os nossos - sejam identificados e reconhecidos – primeiro passo. Quiçá, uma vez reconhecidos, nos levem a uma verdadeira conciliação, sem pressões. Oxalá, tal reconhecimento nos permita dar um passo à frente, como sugere a escola transformativa de Bush e Folger (que ainda preciso estudar), para a qual o acordo não é colocado como objetivo principal do procedimento e, sim, a transformação das pessoas em plano integral, a sua sensibilização mais vertical para o caminho da paz nas relações interpessoais e sociais em sentido mais amplo.  

Hoje, fora das atribuições constitucionais da toga, como outros colegas aposentados que andam abraçando o mesmo caminho, sinto-me bem ao me preparar para dizer: “sejam bem-vindos, meu nome é Comba, aqui estou como mediadora...”

Monday, November 25, 2013

Nos tempos do PCB, capítulo VI

        Em certo fim de tarde, Léo me levou a conhecer o camarada Vinicius. Não era uma reunião, nem um ponto. Era um papo. Alguns militantes das bases contestavam as diretrizes do Comitê Universitário. Era o caso do secretário político da minha base. O Léo fora a uma reunião como assistente e fez o maior sucesso com seu jeito brincalhão e sua análise política. Não deu outra: o secretário me convocou para um ponto na Praça Saens Peña e me advertiu: “mantenha-se afastada do camarada Léo. Ele tem posição contrária à da direção nacional e aquela bagunça que ele faz na reunião não é normal”. Era o caso de ter indagado: “e o que é normal nesse partido clandestino, nessa sociedade pautada pelo regime de exceção?” O fato é que, assim como o secretário tentava posicionar a base contra o Comitê, este, por sua vez, tentava se aproximar das bases. Tudo a ver com a vida partidária – debates, embates, divergências, luta interna. O fato é que não gostei do tom do secretário. Mas adorei a conversa com Léo e Vinicius.
O Léo transitava bem pelos dois mundos: vida legal como aluno (devia estar se formando, não sei bem) e clandestina como comunista. Alto, bonitão, andava com uma pasta de couro marrom, fazendo um tipo mais para mestre do que para estudante. Sabia despertar o gosto pela discussão política, incentivar o pensamento crítico e talvez por isto não fosse bem visto pela direção nacional. Léo nos visitava com frequência no pátio do Instituto de Filosofia, Ciências e Letras/UEG. Juntava gente em torno de si em animadas tardes, às sombras de generosas árvores. Aulas de cidadania e política. Não é à toa que ganhou o apelido de “professor”.     
Vinicius não podia se expor. Era mais visado pela ditadura desde as primeiras horas do golpe de 1964, quando seu pai, detentor de alta patente na Aeronáutica, insurgiu-se contra o regime. Nas reuniões, Vinicius brilhava. Ainda jovem, já dominava o pensamento marxista. Culto, sensível, sedutor, exercia legítima liderança no Comitê Universitário. Guardo difusa memória daquele nosso primeiro encontro ao anoitecer. O papo rolou solto e eu, só na escuta, toda prosa com o tête à tête com os dirigentes comunistas. Embora fazendo o tipo mocinha encantada com os seus heróis, naquele encontro comecei a entender que o ideal de liberdade socialista não cabia na ortodoxia dos manuais de um marxismo mal interpretado. A conversa que tivemos me volta à lembrança em sons de um allegro. E me sinto livre para preencher os vazios da memória com certa dose de invenção, só para dar movimento ao relato, sem desfigurar os fatos.
A certa altura da conversa, o assunto virou para as bandas da música. Acabara de acontecer o embate entre Sabiá (Tom Jobim e Chico Buarque) e “Para Não Dizer Que Não Falei de Flores” (Geraldo Vandré) no Festival Internacional da Canção daquele ano de 1968. “Sabiá” levou o troféu do primeiro lugar. Mas a canção do Vandré foi consagrada pelo público em gesto de protesto. Pode ser que, enquanto eles debatiam o resultado, eu já cantarolasse uma das duas canções. Provavelmente “Sabiá”, musicalmente mais rica, mais lírica, mais ao meu estilo. Lembro que também puxei o refrão do Vandré: “vem, vamos embora que esperar não é saber/quem sabe faz a hora não espera acontecer...” Os camaradas gostaram e pediram bis.
Como escreveu Stefan Zweig em “Maria Antonieta – retrato de uma mulher comum”, compreende-se o presente através do passado. Nada mais certo. Assim, ao relembrar meu tempo de vinculação ao PCB, revitalizo minha percepção da política e tento entender o que está acontecendo agora. É certo que minha visão política tem origem naquela singular experiência do Comitê Universitário. Os meus princípios de análise  – por serem princípios - bem se aplicam ao presente. Conquanto não mais atue politicamente e o que eu penso, portanto, não tem a menor importância, ainda me guio pela ideia da democracia como um valor universal, algo que nos possa levar a um regime socialista desatrelado da sociedade de consumo, do império bancário, um regime que saiba conciliar liberdades individuais e interesses coletivos - algo que o mundo talvez ainda não conheça e que, de todo modo, não me será dado a conhecer.    
A expressão “o que está acontecendo agora” foi o título de um documento de análise sobre a situação nacional apresentado por Vinicius numa das Conferências do Comitê Universitário de que participei. No “aparelho” havia uma ampla sala de jantar onde os trabalhos se concentravam - cortinas cerradas por todo o tempo por medida de segurança. A mesa fora encostada à parede para acomodar melhor a turma. Vinicius puxou uma cadeira para o centro da sala, posicionando-se exatamente sob o foco de luz. Espalhamo-nos à sua volta, guardando certa distância. Ele assim criou um ambiente teatral para sua performance política. Até então, eu não sabia o quanto Vinicius amava a música de Verdi e que tinha o sonho de participar como figurante de uma encenação de ópera. A leitura do documento durou quase o tempo de execução de uma ópera completa, sem que o público desse sinal de cansaço. Feitiços do camarada Vinicius. Esse documento teve o mesmo fim de outros tantos, pois tudo o que se escrevia naquela época, inclusive, o jornal oficial do PCB – A Voz Operária - devia ser destruído depois de lido. Queimar papéis era tarefa frequente na vida dos militantes. Nossa história existe, então, apenas nas memórias ainda não apagadas pelo bug dos neurônios dos que viveram aquela experiência. Fotos como aquela dos presos políticos trocados pelo embaixador americano, nem pensar. Até hoje, não fomos notícia. O que não quer dizer que nossa atuação silenciosa não tenho contribuído à luta contra a ditadura. 
E, assim, a partir daquela naquela noite, fomos “caminhando e cantando e seguindo a canção”, para, um dia, fazer “a hora acontecer”. Léo diz que fomos derrotados. Não sei se concordo. A concepção de derrota, ao meu ver, relaciona-se com objetivo de chegar ao poder. De fato não chegamos e jamais chegaríamos. Dou-me por vitoriosa com o resultado de nosso trabalho: ter enfrentado o recrudescimento da ditadura (AI-5) com uma política de resistência fundada em ações que, de fato, permitiram a reaproximação dos estudantes, por exemplo, pelo restabelecimento da representação de turma, pela reativação de associações esportivas, com a montagem de shows, semanas de debates, etc. Não havia antes e, creio, ainda não em nossa complexa sociedade condições objetivas para o êxito da democracia avançada por nós pensada.
Derrotados ou vitoriosos - depende do enfoque - o importante é ter a certeza da amizade que entre alguns de nós se fortaleceu ao longo dos anos; vínculos que, democraticamente, sobrevivem às divergências que eventualmente nos colocam em pólos opostos. Vinicius que depois foi Samuel e acabou recuperando sua original identidade faleceu em 2012. Valoroso intelectual, pai, avô, amigo, meu parceiro de ópera e de tantas aventuras; emérito professor, deixou seu nome inscrito na história da UFRJ e na luta pela democracia neste país. Transformo, então, a saudade em convivência e, sempre que posso, ao cair da tarde, mando meu pensamento ao encontro de Vinicius. Por mais soberba e poderosa que seja, a morte não nos priva de tudo...   
   

    

Tuesday, November 05, 2013

Nos tempos do PCB - capítulo V

Eu era pequena e, intuitivamente, já acreditava na música como elemento propulsor de nosso (bom) senso de humanidade - uma espécie de purificador de sentimentos, uma força agregadora que pode nos levar às melhores ações sociais transformadoras. Tive em família uma boa formação musical. “Brincar de ópera” era programa certo no amplo quintal de nossa casa na rua Pinto Teles, em Jacarepaguá. As encenações de Madame Butterfly eram frequentes. Como mais velha, eu dirigia a montagem, designando os papéis dos meus irmãos, Armando e Henrique, atribuindo-me o papel título, é claro! Não me recordo bem o que fazíamos nem o que cantávamos. Mas tínhamos a partitura da Butterfly mais ou menos sabida e o nosso jardim era um bom cenário para o primeiro ato. Como ocorre entre crianças, o tempo de combinação do que cada um devia fazer era maior do que a brincadeira em si. Mas as cenas da entrada de Madame Butterfly e a do casamento eram o ponto alto de nossa performance pueril.
        
Na levada da política traçada pelo Comitê Universitário do PCP no início dos anos 70, tivemos a música como aliada. Era preciso espantar os fantasmas do AI-5. Uma companheira de codinome Tania tinha acesso ao empresário dos grandes nomes que haviam despontado nos festivais da canção dos anos 60. Assim, nos aproximamos de artistas como Milton Nascimento, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, MPB4 e outros cujos nomes já não recordo. Estes shows passaram a ter evidente caráter político por inspiração das próprias letras das canções.

Lembro-me bem da noite em que lotamos o Café-Teatro Casa Grande fundado em 1966 por Max Haus, Moysés Ajhaenblat, Moisés Fuks e Sergio Cabral, o pai. Orgulhosa de ter participado da produção, fui às lágrimas quando Milton soltou seu vozeirão: “O que será que me dá/ que me bole por dentro, será que me dá...”        http://letras.mus.br/chico-buarque/45156/   

        Das experiências com pequenos shows partimos para algo mais arrojado: a montagem do Showzão que veio a ocorrer no primeiro semestre de 1970. Os caminhos se abriam à medida em que os artistas compreendiam a nossa política. Não era à toa que atuavam gratuitamente. E lá iam com seus instrumentos e toda aquela parafernália de palco, emprestando sua força de trabalho à causa das liberdades. Elis Regina, grávida de João Marcelo, fazia show no Canecão que nos foi cedido para o evento a se realizar numa segunda-feira, o dia livre dos artistas. E tivemos casa lotada numa segunda-feira! Era prova de que a massa estudantil, silenciosa e aparentemente desinteressada da política, abafava no peito o desconforto com a ditadura. E o grito contido explodiu quando Leila Diniz e Ziraldo, os apresentadores, pisaram o palco que logo seria tomado pelos acordes das mais significativas canções da época. E lá estavam Chico, Elton, Paulinho, MPB4, nossos mais fiéis parceiros na frente musical-estudantil contra a ditadura. Até Elis Regina nos brindou com um trecho de seu show. 
   
         Em 1971 encerramos o ano com outro grande show. Lotamos a quadra do Botafogo. Ziraldo pintou um imenso painel que dava o sentido político do evento. Que fim terá levado esta obra? A mim tocou falar ao final. E lá fui cheia de garra. Quem me viu no palco a conclamar os estudantes para lutar pela democracia não poderia supor que, exatamente naquela semana, eu vivia os dramas de minha separação, provavelmente coisa menor se comparada à dor maior de toda a cidade, de todo o país, que era viver sem liberdade de expressão.

        Mais tarde, em 1976, já vinculada ao movimento feminista, com minha experiência no ramo, juntei-me à Mariska Ribeiro e outras companheiras para montar o show “Amelia Já Era?!” Era preciso conclamar as mulheres para refletir sobre sua subalterna condição social. No movimento feminista nossas gestões eram coletivas, não havia estrutura hierárquica, mas não posso deixar de conferir à Mariska a posição de chefe desta empreitada musical. Profunda conhecedora da música popular brasileira e dotada da mais sensível consciência feminista que eu pudesse ter encontrado, Mariska foi determinante para a realização do projeto. De quebra, ficamos amigas para sempre. Mariska também gostava de ópera e, assim, a festa de nossa longa amizade foi completa, só interrompida com tristeza por sua morte em 2004. Este show realizou-se no Teatro João Caetano, antigo Teatro São Pedro – o que abrigava as temporadas líricas antes da inauguração do Municipal em 1909. Caetano disse que ia e, na hora, não apareceu. Em compensação, Jorge Goulart e Nora Ney abriram o evento, empolgando a platéia. Paulinho da Viola fechou a noite com “Coisas do Mundo Minha Nega” (1968), joia de sua criação que também era apresentada nos shows estudantis do Partidão.  

Tudo bem, virei juíza - acho até que estava escrito. Mas, quem sabe, também não teria tido êxito como empreendedora musical?     

Wednesday, October 30, 2013

Nos tempos do PCB - capítulo IV

     A velha guarda do Partido era bamba em clandestinidade. Desde sua fundação, o “clube” (assim chamávamos a organização para disfarçar) contava um breve tempo de vida na legalidade. Sedimentou-se, assim, uma obrigatória cultura de ação às escondidas. Entretanto, a maioria dos militantes das bases universitárias tinha vida legal, comparecia às aulas, cumpria rotinas acadêmicas. Mas mesmo com vida legal, a atuação era clandestina e para tanto, adotávamos, via de regra, a experiência partidária no quesito segurança. E não deixávamos de recriá-la até com certos exageros, algo próprio da nossa faixa etária. O princípio era não saber da vida dos militantes, especialmente da turma da  Direção. Em reuniões e pontos, usávamos nomes de guerra, mesmo entre os que se relacionavam nos campi universitários. Aí, a coisa ficava engraçada, mas fazia sentido – quanto menos informações se tivesse de um companheiro, de uma companheira, menor seria o estrago em caso de prisão. Não se podia garantir a resistência à tortura, assim como não seria justo – e jamais será - condenar quem, nas mãos da repressão,  “entregou” pessoas e esquemas. Cabia agir sempre com cautela e prevenção. 
   
        No setor universitário as medidas de segurança tinham maior relevância na organização das Conferências, nas quais eram debatidas e aprovadas as teses que norteariam a ação futura, bem como eleita a nova Direção. Contava-se com a participação de militantes indicados pelas bases, reunindo-se, assim, um maior número de pessoas, o que desafiava cuidados especiais com os sigilos. Sem contar que devia comparecer à Conferência alguém da direção nacional, quase sempre gente bem mais velha que nós, a despertar sentimento de reverência e curiosidade.

Não lembro de quantas conferências participei. Mas a que talvez tenha ocorrido ao início de 1970 me restou inesquecível. Guardo a lembrança de debates interessantes e muita farra nos intervalos. Nem sei de onde tirávamos aquela esperança, aquela euforia. Talvez por apostar na nossa política de juntar os cacos, reunir os estudantes, nem que fosse em torno de uma associação esportiva. Este foi o eixo da política aprovada na Conferência de 70 que, de fato, rendeu bons frutos.

Como já mencionei, através do companheiro “Gafanhoto”, passamos a frequentar os ensaios da Imperatriz Leopoldinense, na quadra da rua Professor Lacê, que viria naquele ano com o samba-enredo “Oropa, França e Bahia”, tendo como tema a Semana Modernista. Estes encontros em Ramos, ao som da batucada, azeitavam nosso entendimento quanto à necessidade de trabalhar pela abertura democrática. No mais, éramos jovens, gostávamos de andar em bando e de nos divertir. Eis a letra do samba:

1922, OROPA, FRANÇA E BAHIA
Na alvorada de glória
Da literatura brasileira
Quando um marco transformou a velha história
Da arte numa nova fronteira
Dentro da Semana Modernista
Criou a Independência Cultural
Deu plena liberdade ao artista
Desprezando a tradição
Neste verso original
O rei mandou me chamar
Pra casar com sua fia (bis)
O dote que ele me dava
Oropa, França e Bahia
Vibrante, surgiu da lenda um bandeirante
Sob a luz dos pirilampos
Perdidos nos campos
A procura do mar
Sem saber voltar, sem saber voltar
Macunaíma, negro sonso, feiticeiro
Cobra Norato e a rainha Luzia
São personagens do cenário brasileiro
Como a mulata, o café e o vatapá
No Carnaval, o Arlequim e a Colombina
Linda menina, amada pelo Pierrô
Parece o lamento da prece
A voz derradeira da porta-bandeira (bis)
Morrendo de amor
É tempo de amar o que se amou
Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô,
Na alvorada...
O ano de 1970 assim começou na Conferência em tons de promissora alvorada. Em que pesasse a ortodoxia do pensamento comunista por nós herdado, era significativa entre nós a adesão ao conceito de  democracia como um valor universal. Era preciso abrir “nova fronteira” e trazer também o conceito de democracia para dentro da organização partidária, a partir da convicção de que o socialismo deveria ser construído no mais profundo respeito às liberdades democráticas, no esteio do pensamento de Antonio Gramsci, Palmiro Togliatti e Enrico Berlinguer. Se não era de nosso alcance rever a tradicional concepção partidária de viés autoritário pendente para o esquerdismo, apostamos na democracia como estratégia de ação para a universidade, visando recuperar no meio estudantil um sentimento de independência, alguma liberdade, através da arte do diálogo e do entendimento que se fizessem possíveis. E este foi, sem dúvida, o nosso maior acerto.

Nos intervalos das maratonas verbais da Conferência comíamos macarronadas sofríveis que não abalavam o nosso bom humor. E tendo o David Capistrano por perto, alegria era coisa certa. Foi num momento desses da mais livre descontração que nasceu a paródia ao samba que nos unia na quadra da Imperatriz. É claro que participei da redação, aproveitando a vocação que me corria no sangue, sobrinha que sou do Agostinho José Marques Porto (1987-1934), mestre do teatro de revista, gozador, autor de “Ai, Ioiô” em parceria com Henrique Vogeler e Luiz Peixoto e também de divertidas paródias.  Com ajuda da querida Teteca - Maria Tereza Lopes Teixeira -, foi possível resgatar a nossa criação. Eis a letra:  
  
Na Conferência de glória
Da universidade brasileira
Quando o Léo transformou a velha história
Do “clube” numa gafieira
Dentro do “aparelho” requintado
Criou a impressão de bacanal
Deu plena liberdade aos delegados
Começando a intervenção com um grito triunfal

Vitão mandou me chamar
Pra acabar com a fresquete
A direção de setenta vai ser mesmo é de sete.

Vibrante, surgiu Afonso saltitante
Tendo ao lago o Joaquim
Pedindo a palavra sem saber o que falar,
Só querendo agitar, só querendo agitar.
Arlindo Belo entre o velho e o novo
Pede a palavra pra receita aviar
E a Zenir falando alto o tempo todo
 – “Só tem fofoca, o negócio é educar”
(neste trecho, a memória perde duas estrofes anteriores ao refrão otimista):
Setenta, com o Léo na cabeça
O setor vai pra frente
E a nossa política vai avançar
(BIS)
É tempo de esquecer o que passou
Ô,Ô,Ô,Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô.  
        Na Conferência...


Não me sinto autorizada a explicar os pontos incompreensíveis da paródia, tampouco, a revelar quem é quem nessa história. Traçávamos, sim, uma política de massas, mas o Partido, por força da legislação autoritária, ainda permaneceria por mais de uma década na clandestinidade.