Monday, November 25, 2013

Nos tempos do PCB, capítulo VI

        Em certo fim de tarde, Léo me levou a conhecer o camarada Vinicius. Não era uma reunião, nem um ponto. Era um papo. Alguns militantes das bases contestavam as diretrizes do Comitê Universitário. Era o caso do secretário político da minha base. O Léo fora a uma reunião como assistente e fez o maior sucesso com seu jeito brincalhão e sua análise política. Não deu outra: o secretário me convocou para um ponto na Praça Saens Peña e me advertiu: “mantenha-se afastada do camarada Léo. Ele tem posição contrária à da direção nacional e aquela bagunça que ele faz na reunião não é normal”. Era o caso de ter indagado: “e o que é normal nesse partido clandestino, nessa sociedade pautada pelo regime de exceção?” O fato é que, assim como o secretário tentava posicionar a base contra o Comitê, este, por sua vez, tentava se aproximar das bases. Tudo a ver com a vida partidária – debates, embates, divergências, luta interna. O fato é que não gostei do tom do secretário. Mas adorei a conversa com Léo e Vinicius.
O Léo transitava bem pelos dois mundos: vida legal como aluno (devia estar se formando, não sei bem) e clandestina como comunista. Alto, bonitão, andava com uma pasta de couro marrom, fazendo um tipo mais para mestre do que para estudante. Sabia despertar o gosto pela discussão política, incentivar o pensamento crítico e talvez por isto não fosse bem visto pela direção nacional. Léo nos visitava com frequência no pátio do Instituto de Filosofia, Ciências e Letras/UEG. Juntava gente em torno de si em animadas tardes, às sombras de generosas árvores. Aulas de cidadania e política. Não é à toa que ganhou o apelido de “professor”.     
Vinicius não podia se expor. Era mais visado pela ditadura desde as primeiras horas do golpe de 1964, quando seu pai, detentor de alta patente na Aeronáutica, insurgiu-se contra o regime. Nas reuniões, Vinicius brilhava. Ainda jovem, já dominava o pensamento marxista. Culto, sensível, sedutor, exercia legítima liderança no Comitê Universitário. Guardo difusa memória daquele nosso primeiro encontro ao anoitecer. O papo rolou solto e eu, só na escuta, toda prosa com o tête à tête com os dirigentes comunistas. Embora fazendo o tipo mocinha encantada com os seus heróis, naquele encontro comecei a entender que o ideal de liberdade socialista não cabia na ortodoxia dos manuais de um marxismo mal interpretado. A conversa que tivemos me volta à lembrança em sons de um allegro. E me sinto livre para preencher os vazios da memória com certa dose de invenção, só para dar movimento ao relato, sem desfigurar os fatos.
A certa altura da conversa, o assunto virou para as bandas da música. Acabara de acontecer o embate entre Sabiá (Tom Jobim e Chico Buarque) e “Para Não Dizer Que Não Falei de Flores” (Geraldo Vandré) no Festival Internacional da Canção daquele ano de 1968. “Sabiá” levou o troféu do primeiro lugar. Mas a canção do Vandré foi consagrada pelo público em gesto de protesto. Pode ser que, enquanto eles debatiam o resultado, eu já cantarolasse uma das duas canções. Provavelmente “Sabiá”, musicalmente mais rica, mais lírica, mais ao meu estilo. Lembro que também puxei o refrão do Vandré: “vem, vamos embora que esperar não é saber/quem sabe faz a hora não espera acontecer...” Os camaradas gostaram e pediram bis.
Como escreveu Stefan Zweig em “Maria Antonieta – retrato de uma mulher comum”, compreende-se o presente através do passado. Nada mais certo. Assim, ao relembrar meu tempo de vinculação ao PCB, revitalizo minha percepção da política e tento entender o que está acontecendo agora. É certo que minha visão política tem origem naquela singular experiência do Comitê Universitário. Os meus princípios de análise  – por serem princípios - bem se aplicam ao presente. Conquanto não mais atue politicamente e o que eu penso, portanto, não tem a menor importância, ainda me guio pela ideia da democracia como um valor universal, algo que nos possa levar a um regime socialista desatrelado da sociedade de consumo, do império bancário, um regime que saiba conciliar liberdades individuais e interesses coletivos - algo que o mundo talvez ainda não conheça e que, de todo modo, não me será dado a conhecer.    
A expressão “o que está acontecendo agora” foi o título de um documento de análise sobre a situação nacional apresentado por Vinicius numa das Conferências do Comitê Universitário de que participei. No “aparelho” havia uma ampla sala de jantar onde os trabalhos se concentravam - cortinas cerradas por todo o tempo por medida de segurança. A mesa fora encostada à parede para acomodar melhor a turma. Vinicius puxou uma cadeira para o centro da sala, posicionando-se exatamente sob o foco de luz. Espalhamo-nos à sua volta, guardando certa distância. Ele assim criou um ambiente teatral para sua performance política. Até então, eu não sabia o quanto Vinicius amava a música de Verdi e que tinha o sonho de participar como figurante de uma encenação de ópera. A leitura do documento durou quase o tempo de execução de uma ópera completa, sem que o público desse sinal de cansaço. Feitiços do camarada Vinicius. Esse documento teve o mesmo fim de outros tantos, pois tudo o que se escrevia naquela época, inclusive, o jornal oficial do PCB – A Voz Operária - devia ser destruído depois de lido. Queimar papéis era tarefa frequente na vida dos militantes. Nossa história existe, então, apenas nas memórias ainda não apagadas pelo bug dos neurônios dos que viveram aquela experiência. Fotos como aquela dos presos políticos trocados pelo embaixador americano, nem pensar. Até hoje, não fomos notícia. O que não quer dizer que nossa atuação silenciosa não tenho contribuído à luta contra a ditadura. 
E, assim, a partir daquela naquela noite, fomos “caminhando e cantando e seguindo a canção”, para, um dia, fazer “a hora acontecer”. Léo diz que fomos derrotados. Não sei se concordo. A concepção de derrota, ao meu ver, relaciona-se com objetivo de chegar ao poder. De fato não chegamos e jamais chegaríamos. Dou-me por vitoriosa com o resultado de nosso trabalho: ter enfrentado o recrudescimento da ditadura (AI-5) com uma política de resistência fundada em ações que, de fato, permitiram a reaproximação dos estudantes, por exemplo, pelo restabelecimento da representação de turma, pela reativação de associações esportivas, com a montagem de shows, semanas de debates, etc. Não havia antes e, creio, ainda não em nossa complexa sociedade condições objetivas para o êxito da democracia avançada por nós pensada.
Derrotados ou vitoriosos - depende do enfoque - o importante é ter a certeza da amizade que entre alguns de nós se fortaleceu ao longo dos anos; vínculos que, democraticamente, sobrevivem às divergências que eventualmente nos colocam em pólos opostos. Vinicius que depois foi Samuel e acabou recuperando sua original identidade faleceu em 2012. Valoroso intelectual, pai, avô, amigo, meu parceiro de ópera e de tantas aventuras; emérito professor, deixou seu nome inscrito na história da UFRJ e na luta pela democracia neste país. Transformo, então, a saudade em convivência e, sempre que posso, ao cair da tarde, mando meu pensamento ao encontro de Vinicius. Por mais soberba e poderosa que seja, a morte não nos priva de tudo...   
   

    

Tuesday, November 05, 2013

Nos tempos do PCB - capítulo V

Eu era pequena e, intuitivamente, já acreditava na música como elemento propulsor de nosso (bom) senso de humanidade - uma espécie de purificador de sentimentos, uma força agregadora que pode nos levar às melhores ações sociais transformadoras. Tive em família uma boa formação musical. “Brincar de ópera” era programa certo no amplo quintal de nossa casa na rua Pinto Teles, em Jacarepaguá. As encenações de Madame Butterfly eram frequentes. Como mais velha, eu dirigia a montagem, designando os papéis dos meus irmãos, Armando e Henrique, atribuindo-me o papel título, é claro! Não me recordo bem o que fazíamos nem o que cantávamos. Mas tínhamos a partitura da Butterfly mais ou menos sabida e o nosso jardim era um bom cenário para o primeiro ato. Como ocorre entre crianças, o tempo de combinação do que cada um devia fazer era maior do que a brincadeira em si. Mas as cenas da entrada de Madame Butterfly e a do casamento eram o ponto alto de nossa performance pueril.
        
Na levada da política traçada pelo Comitê Universitário do PCP no início dos anos 70, tivemos a música como aliada. Era preciso espantar os fantasmas do AI-5. Uma companheira de codinome Tania tinha acesso ao empresário dos grandes nomes que haviam despontado nos festivais da canção dos anos 60. Assim, nos aproximamos de artistas como Milton Nascimento, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, MPB4 e outros cujos nomes já não recordo. Estes shows passaram a ter evidente caráter político por inspiração das próprias letras das canções.

Lembro-me bem da noite em que lotamos o Café-Teatro Casa Grande fundado em 1966 por Max Haus, Moysés Ajhaenblat, Moisés Fuks e Sergio Cabral, o pai. Orgulhosa de ter participado da produção, fui às lágrimas quando Milton soltou seu vozeirão: “O que será que me dá/ que me bole por dentro, será que me dá...”        http://letras.mus.br/chico-buarque/45156/   

        Das experiências com pequenos shows partimos para algo mais arrojado: a montagem do Showzão que veio a ocorrer no primeiro semestre de 1970. Os caminhos se abriam à medida em que os artistas compreendiam a nossa política. Não era à toa que atuavam gratuitamente. E lá iam com seus instrumentos e toda aquela parafernália de palco, emprestando sua força de trabalho à causa das liberdades. Elis Regina, grávida de João Marcelo, fazia show no Canecão que nos foi cedido para o evento a se realizar numa segunda-feira, o dia livre dos artistas. E tivemos casa lotada numa segunda-feira! Era prova de que a massa estudantil, silenciosa e aparentemente desinteressada da política, abafava no peito o desconforto com a ditadura. E o grito contido explodiu quando Leila Diniz e Ziraldo, os apresentadores, pisaram o palco que logo seria tomado pelos acordes das mais significativas canções da época. E lá estavam Chico, Elton, Paulinho, MPB4, nossos mais fiéis parceiros na frente musical-estudantil contra a ditadura. Até Elis Regina nos brindou com um trecho de seu show. 
   
         Em 1971 encerramos o ano com outro grande show. Lotamos a quadra do Botafogo. Ziraldo pintou um imenso painel que dava o sentido político do evento. Que fim terá levado esta obra? A mim tocou falar ao final. E lá fui cheia de garra. Quem me viu no palco a conclamar os estudantes para lutar pela democracia não poderia supor que, exatamente naquela semana, eu vivia os dramas de minha separação, provavelmente coisa menor se comparada à dor maior de toda a cidade, de todo o país, que era viver sem liberdade de expressão.

        Mais tarde, em 1976, já vinculada ao movimento feminista, com minha experiência no ramo, juntei-me à Mariska Ribeiro e outras companheiras para montar o show “Amelia Já Era?!” Era preciso conclamar as mulheres para refletir sobre sua subalterna condição social. No movimento feminista nossas gestões eram coletivas, não havia estrutura hierárquica, mas não posso deixar de conferir à Mariska a posição de chefe desta empreitada musical. Profunda conhecedora da música popular brasileira e dotada da mais sensível consciência feminista que eu pudesse ter encontrado, Mariska foi determinante para a realização do projeto. De quebra, ficamos amigas para sempre. Mariska também gostava de ópera e, assim, a festa de nossa longa amizade foi completa, só interrompida com tristeza por sua morte em 2004. Este show realizou-se no Teatro João Caetano, antigo Teatro São Pedro – o que abrigava as temporadas líricas antes da inauguração do Municipal em 1909. Caetano disse que ia e, na hora, não apareceu. Em compensação, Jorge Goulart e Nora Ney abriram o evento, empolgando a platéia. Paulinho da Viola fechou a noite com “Coisas do Mundo Minha Nega” (1968), joia de sua criação que também era apresentada nos shows estudantis do Partidão.  

Tudo bem, virei juíza - acho até que estava escrito. Mas, quem sabe, também não teria tido êxito como empreendedora musical?