Friday, March 04, 2011

REPIQUES



Vejo-me pequena junto à janela azul do quarto de meus pais - nariz franzido em reação à luminosidade solar ainda feita de aurora. Minha mãe sintoniza a Rádio Nacional e segue a rotina das primeiras tarefas do dia. Marchinhas já assim tão cedo? O que deu nela? Sábado era dia de ópera - meu pai em seu pódio imaginário a reger aberturas de Wagner.  

            Meu faro para novidades se ativa com a música que ecoava pela casa de arquitetura simples, desproporcional à fartura do terreno onde, aos fundos, um imenso bambuzal atiçava a ventania e estabelecia meus limites com o mundo.

De repente, ouve-se ao longe um batuque que se mescla à música de dentro de casa.

O pai varria o nosso vasto jardim. A mãe chega à janela e lhe pergunta se já era hora da surpresa. Ele segue até o portão, espia a rua e de lá faz um sinal de positivo. A mãe corre ao armário, retira de sua parte mais alta um embrulho, algo visivelmente ali colocado para ficar escondido das crianças. Deposita o pacote sobre a cama do casal. Solta o barbante. Minha curiosidade se aguça com os movimentos dela pelo quarto, enquanto o Sol manda um raio mais forte, marcando sua presença na cena. A mãe vai à penteadeira e de uma das miúdas gavetas retira sua modesta caixa de maquiagem. Senta-se à cabeceira da cama e me oferece o colo em gesto de aconchego.  

- Abre a caixa, filha.
Não entendi, pois o acesso à penteadeira, em regra, me era vedado.
- Pegue o batom vermelho...
- O vermelho? E eu posso?
- Sim. Hoje pode. 

No rádio, Virginia Lane dispara: “... quem não tem seu sassarico, sassarica mesmo só/ porque sem sassaricar essa vida é um nó...” palavras que, de todo, escapavam à minha inocente compreensão.         

O som do batuque vindo da rua faz-se mais envolvente.   

Com jeito e precisão, a mãe colore meus lábios, artista atenta aos detalhes da criação. Em silêncio, ela me sorri com os olhos, concentrada na tarefa. Sinto sua respiração suave, num face a face inesquecível. O repique de meu coração se junta às zabumbas do rádio e às que zoavam lá fora - completa-se, assim, a batida perfeita dos três tambores do samba. Por fim, a mãe me conduz à penteadeira, cujo espelho traduz meu precoce olhar de cumplicidade feminina. Feliz e agradecida, ensaio uma requebradinha, no embalo das múltiplas percussões matinais.     

O embrulho sobre a cama se desfaz em máscaras, lança-perfumes, pequenos pandeiros, confetes e serpentinas. Era o ano de 1952. Assim, aos seis anos, compreendi o Carnaval como um símbolo de liberdade e alegrias.               

            *(texto produzido para a oficina “Terapia da Palavra” - outubro, 2010)