Wednesday, September 03, 2008

Indefinições

Simone de Beauvoir escreveu: “A dimensão dos empreendimentos humanos não é o finito nem o infinito, mas o indefinido: esta palavra não se deixa encerrar em nenhum limite fixo; a melhor maneira de abordá-la é divagar sobre suas possíveis variações.” (“A Força das Coisas”, 1963). Este conceito de indefinido como algo maior que o próprio infinito alarga a idéia de liberdade e sugere experimentá-la nas ações da vida. Mas é preciso muita coragem para ousar a liberdade no cotidiano. Como é difícil largar de mão a rotina que se apodera de nossa existência! Como é difícil deixar passar o futuro sem metas prévias! E será que há futuro para
quem não sabe ou não quer (dá no mesmo) traçar estratégias?

Friday, July 18, 2008

Mutações

De que adianta corrigir as palpebras distendidas, penso eu, se há problemas com o vítreo e "moscas volantes" (termo medico) assumem o primeiro plano em minha visão, deixando a paisagem, o ser ou a coisa observada como mero pano de fundo?
De que adianta tingir os cabelos para esconder o branco, se o branco dos cabelos nada mais é do que a expressão da perda de tons do que não é visível em meu ser?

Sunday, February 03, 2008

Dona Santinha


Infância

Os temporais de fins de tarde, na verdade, brotavam lá no bambuzal que fazia limite aos fundos do nosso imenso quintal.
Nem é preciso fechar os olhos para me ver de cabelos molhados, escorridos, sentada junto aos meus irmãos na murada da varanda dos fundos de nossa casa. Nosso olhar infantil perdia-se na verde e acanhada paisagem suburbana. E como era delicioso aquele cheiro de terra quente a receber do céu torrentes de água benta!
“São Jerônimo! Santa Bárbara!” - gritava minha mãe, a cada relâmpago seguido do estrondo dos trovões. Assustada, corria pela casa, fechando janelas, vistoriando goteiras. Enquanto tomava estas providências, quietinhos, joelhos inevitavelmente ralados, contemplávamos a chuva forte a penetrar na terra. A ventania agitava o pé de amoras, o palácio do faz de conta que eu era... das nossas intermináveis brincadeiras.
Naquela época Jacarepaguá tinha seus encantos.
Os temporais benignos de minha infância mal se comparam com os que hoje gritam o caos de um bairro ampliado na marra, sem “desenhos lógicos”.
A chuva chegava ruidosa ao cair da tarde, mas era, sim, uma espécie de benção. Refrescava a terra, limpava o céu e fazia a festa de uma criançada ainda protegida por famílias até certo ponto coesas. Gente sem capital, mas com plena posse de seus terrenos, de suas mangueiras em generosas sombras, de suas casas simples onde, à noite, a garotada era recolhida, ainda cedo, depois da agitada alegria do pique-bandeira.
A casa do grande quintal onde vivi até os 10 anos não mais existe. Mas minha mãe lá está no velho bairro, encarnando a linha do tempo que me permite transitar do presente à infância, da ficção à realidade e vice-versa. A casa é outra, mas lá resiste, carregada de nossa história, guardando a memória das chuvas, do vigoroso bambuzal e dos primórdios de nossas vidas.
A terra sadia onde brincávamos hoje jaz sob camadas de concreto alinhadas em desordem. O encontro entre o céu e a terra, a chuvarada, a vizinhança, a criançada, os santos invocados por minha mãe, tudo hoje é um fiapo de lembrança em que me apego para trazer ao presente o frescor de um tempo feliz. Que esta lembrança seja motivo de alegria agora e já. Que assim seja, com as benções de São Jerônimo, de Santa Bárbara, de Dona Yemanjá e de Dona Santinha, porque hoje é o dia delas, “Odoyá”!

Rua Albano, 132
02 de fevereiro de 2008.