A velha guarda do Partido
era bamba em clandestinidade. Desde sua fundação, o “clube” (assim chamávamos a
organização para disfarçar) contava um breve tempo de vida na legalidade. Sedimentou-se,
assim, uma obrigatória cultura de ação às escondidas. Entretanto, a maioria dos
militantes das bases universitárias tinha vida legal, comparecia às aulas,
cumpria rotinas acadêmicas. Mas mesmo com vida legal, a atuação era clandestina
e para tanto, adotávamos, via de regra, a experiência partidária no quesito
segurança. E não deixávamos de recriá-la até com certos exageros, algo próprio
da nossa faixa etária. O princípio era não saber da vida dos militantes, especialmente da turma da Direção. Em reuniões e pontos, usávamos nomes de guerra, mesmo entre os que se relacionavam nos campi universitários. Aí, a coisa ficava engraçada, mas fazia
sentido – quanto menos informações se tivesse de um companheiro, de uma
companheira, menor seria o estrago em caso de prisão. Não se podia garantir a
resistência à tortura, assim como não seria justo – e jamais será - condenar quem,
nas mãos da repressão, “entregou”
pessoas e esquemas. Cabia agir sempre com cautela e prevenção.
No setor universitário as medidas de segurança tinham maior
relevância na organização das Conferências, nas quais eram debatidas e
aprovadas as teses que norteariam a ação futura, bem como eleita a nova
Direção. Contava-se com a participação de militantes indicados pelas bases,
reunindo-se, assim, um maior número de pessoas, o que desafiava cuidados especiais com os sigilos. Sem contar que devia comparecer à Conferência alguém da direção
nacional, quase sempre gente bem mais velha que nós, a despertar sentimento de
reverência e curiosidade.
Não
lembro de quantas conferências participei. Mas a que talvez tenha ocorrido ao
início de 1970 me restou inesquecível. Guardo a lembrança de debates
interessantes e muita farra nos intervalos. Nem sei de onde tirávamos aquela esperança,
aquela euforia. Talvez por apostar na nossa política de juntar os cacos, reunir
os estudantes, nem que fosse em torno de uma associação esportiva. Este foi o
eixo da política aprovada na Conferência de 70 que, de fato, rendeu bons
frutos.
Como
já mencionei, através do companheiro “Gafanhoto”, passamos a frequentar os ensaios
da Imperatriz Leopoldinense, na quadra da rua Professor Lacê, que
viria naquele ano com o samba-enredo “Oropa,
França e Bahia”, tendo como tema a Semana Modernista. Estes encontros em Ramos, ao som da batucada, azeitavam
nosso entendimento quanto à necessidade de trabalhar pela abertura democrática. No mais,
éramos jovens, gostávamos de andar em bando e de nos divertir. Eis a letra do
samba:
1922,
OROPA, FRANÇA E BAHIA
Na
alvorada de glória
Da literatura brasileira
Quando um marco transformou a velha história
Da arte numa nova fronteira
Dentro da Semana Modernista
Criou a Independência Cultural
Deu plena liberdade ao artista
Desprezando a tradição
Neste verso original
Da literatura brasileira
Quando um marco transformou a velha história
Da arte numa nova fronteira
Dentro da Semana Modernista
Criou a Independência Cultural
Deu plena liberdade ao artista
Desprezando a tradição
Neste verso original
O
rei mandou me chamar
Pra casar com sua fia (bis)
O dote que ele me dava
Oropa, França e Bahia
Pra casar com sua fia (bis)
O dote que ele me dava
Oropa, França e Bahia
Vibrante,
surgiu da lenda um bandeirante
Sob a luz dos pirilampos
Perdidos nos campos
A procura do mar
Sem saber voltar, sem saber voltar
Macunaíma, negro sonso, feiticeiro
Cobra Norato e a rainha Luzia
São personagens do cenário brasileiro
Como a mulata, o café e o vatapá
No Carnaval, o Arlequim e a Colombina
Linda menina, amada pelo Pierrô
Sob a luz dos pirilampos
Perdidos nos campos
A procura do mar
Sem saber voltar, sem saber voltar
Macunaíma, negro sonso, feiticeiro
Cobra Norato e a rainha Luzia
São personagens do cenário brasileiro
Como a mulata, o café e o vatapá
No Carnaval, o Arlequim e a Colombina
Linda menina, amada pelo Pierrô
Parece
o lamento da prece
A voz derradeira da porta-bandeira (bis)
Morrendo de amor
A voz derradeira da porta-bandeira (bis)
Morrendo de amor
É
tempo de amar o que se amou
Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô,
Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô,
Na
alvorada...
O ano
de 1970 assim começou na Conferência em tons de promissora alvorada. Em que pesasse a
ortodoxia do pensamento comunista por nós herdado, era significativa entre nós a
adesão ao conceito de democracia como um
valor universal. Era preciso abrir “nova fronteira” e trazer também o conceito
de democracia para dentro da organização partidária, a partir da convicção de
que o socialismo deveria ser construído no mais profundo respeito às liberdades
democráticas, no esteio do pensamento de Antonio Gramsci, Palmiro Togliatti e
Enrico Berlinguer. Se não era de nosso alcance rever a tradicional concepção partidária
de viés autoritário pendente para o esquerdismo, apostamos na democracia como
estratégia de ação para a universidade, visando recuperar no meio estudantil um
sentimento de independência, alguma liberdade, através da arte do diálogo e do
entendimento que se fizessem possíveis. E este foi, sem dúvida, o nosso maior
acerto.
Nos
intervalos das maratonas verbais da Conferência comíamos macarronadas sofríveis
que não abalavam o nosso bom humor. E tendo o David Capistrano por perto,
alegria era coisa certa. Foi num momento desses da mais livre descontração que
nasceu a paródia ao samba que nos unia na quadra da Imperatriz. É claro que
participei da redação, aproveitando a vocação que me corria no sangue, sobrinha que sou do Agostinho José Marques Porto (1987-1934), mestre do teatro de revista, gozador, autor de “Ai, Ioiô” em
parceria com Henrique Vogeler e Luiz Peixoto e também de divertidas paródias. Com ajuda da querida Teteca - Maria Tereza Lopes Teixeira -, foi possível resgatar a nossa criação. Eis a letra:
Na Conferência de glória
Da universidade brasileira
Quando o Léo transformou a velha história
Do “clube” numa gafieira
Dentro do “aparelho” requintado
Criou a impressão de bacanal
Deu plena liberdade aos delegados
Começando a intervenção com um grito
triunfal
Vitão mandou me chamar
Pra acabar com a fresquete
A direção de setenta vai ser mesmo é de
sete.
Vibrante, surgiu Afonso saltitante
Tendo ao lago o Joaquim
Pedindo a palavra sem saber o que falar,
Só querendo agitar, só querendo agitar.
Arlindo Belo entre o velho e o novo
Pede a palavra pra receita aviar
E a Zenir falando alto o tempo todo
– “Só tem fofoca, o negócio é educar”
(neste
trecho, a memória perde duas estrofes anteriores ao refrão otimista):
Setenta, com o Léo na cabeça
O setor vai pra frente
E
a nossa política vai avançar
(BIS)
É tempo de esquecer o que passou
Ô,Ô,Ô,Ô,
Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô.
Na Conferência...
Não me sinto autorizada a explicar os pontos incompreensíveis da paródia, tampouco, a revelar quem é quem nessa história. Traçávamos, sim, uma política de massas,
mas o Partido, por força da legislação autoritária, ainda permaneceria por mais de uma década na clandestinidade.