Tuesday, November 01, 2011

Com carinho, para lembrar Dona Irene


A morte de D. Irene (1919-2011), avó paterna de Fernanda, minha primeira filha, pede que eu escreva como testemunha do amor mais intenso e recíproco que eu possa ter conhecido. 

Tudo veio a calhar como uma história bem concebida. Em 1970, a notícia da minha gravidez foi um sinal de vida a reduzir o peso de um luto intocável, tal como ela o vivia, pela perda do marido um ano antes. Como era imensa a minha responsabilidade!  Mas, tudo correu bem, desde o início. Naquele tempo, não se falava ainda em saber o sexo de bebês por ultrassonografia. No caso, nem foi preciso. A avó declarou sua certeza e, assim, passamos a nos preparar para a chegada da nossa menina. Sim, digo “nossa” porque não me foi difícil dividir a delícia da maternidade com ela, a avó. Neste ponto fui generosa. Meu olhar para as demandas coletivas talvez tenha facilitado a socialização do meu bebê.

Por outro lado, naquele tempo, não havia a imposição do “politicamente correto” no que diz respeito a ser mãe. Pais ainda não freqüentavam salas de parto. Pediatras ainda não se impunham sobre o nosso instinto materno. Dei liberdade à participação da avó, algo que, aliás, aconteceria, a despeito de minha vontade. Mas, pelo pouco que me conheço, jamais problematizaria a nossa convivência por este aspecto. Se ela dizia que a temperatura da água do banho do bebê estava errada, eu tentava “consertar”. Se o vestido por ela confeccionado não era de meu inteiro agrado, sem problemas, eu deixava que a menina o usasse.

Por sorte, intuitivamente, eu entendia a força maior do amor delas. Um amor tão verdadeiro, tão do bem, como se diz, que jamais me despertou ciúmes e jamais significou que o meu vínculo de amor com minha filha pudesse se abalar. A avó botou letra nova no “Nana, neném”: “Ela é de Vó, elazinha é de Vó/ Ela é de Vó, elazinha é de Vódeia...”. Jamais senti a canção como declaração de propriedade. Recebi-a com carinho e a cantei para embalar meus netos, minhas netas. O Vódeia pegou como nova identidade de D. Irene.     

No jeito intenso dela de amar, passou a ser também avó dos meus filhos do segundo casamento. Em verdade, passamos a formar uma nova família ou - melhor - uma família assentada em novos fundamentos. Nada de caso pensado. Apenas nos permitimos maior indulgência com as voltas que o mundo dá. Nada de teoria. Mas é inegável que o instinto de liberdade saiu vencedor na história de nossa família. Uma história do triunfo dos afetos sobre as instituições. Uma história feita de encomenda para acolher o amor singelo entre a avó e a neta, vínculo que transcende os limites físicos da vida e da morte. Exemplo de entrega, de tolerância. Como me faz bem saber que dei meu corpo à gestação deste evento amoroso pleno de eternidade! Obrigada, vida. Obrigada, Raulino. Obrigada, Vó. Obrigada, Nanda, milha filha.