Saturday, December 30, 2006

Para Sophia

O mar voltou como tema, pretexto talvez
para novo emprego da palavra maresia em minha escrita.
E foram noites de insônia hoje compreendidas como premonição
de meu encontro com a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen.
Quando noutro dia escrevi algo sobre mar e ventanias
eu não sabia, sinceramente, nada sabia sobre a obra de Sophia.
Não sabia, por exemplo, que ela havia escrito:

Mar,
metade da minha alma e feita de maresia
.”

Não fosse a mente sempre aturdida de pensamentos e vontade de escrever,
hoje eu dormiria de consciência tranqüila.
Não, não cometi o delito de ter me apropriado da poética de Sophia.
Mas, algo estranho aconteceu e um desejo de mar assim feito em palavras
conduziu-me por praias desertas, em noites de curiosa ansiedade,
como se alguma divindade me tivesse permitido contemplar,
com direito de poder olhar para trás ao voltar,
os luminosos corais de Sophia de Mello Breyner Andresen.

Wednesday, November 29, 2006

Infrutescências*

Banhar-se com sabonete de essência de figo.

Saborear figos com mel no café da manhã.

Sentir o perfume do vinho tinto naquele exato instante anterior ao ato de prová-lo.

Tomar chá de frutas cítricas, no sossego da serra, a las cinco de la tarde.

Recordar o perfume das jabuticabeiras do sítio onde feitas as primeiras descobertas da adolescência.

Caprichar no molho de limão galego que alegrará a salada verde.

Aliás, continuar a dieta nas terças-feiras.

Ver os seios crescerem sem saber o que fazer com eles.

De vez em quando, vestir-se em tons de mamão papaia.

Acordar com vontade de abrir os olhos e com alguma alegria no peito, o bastante para perceber as infrutescências da vida.

* palavra descoberta nas explicações do sachê do chá, num domingo, fim de tarde, pouco antes de ver “Volver”, do Pedro Almodovar.

Monday, November 20, 2006

Mitocôndrias

Se a comunicação é tudo, se “quem não se comunica se trumbica”, preciso fazer contato urgente entre mim e minhas mitocôndrias. Em mais de 60 anos, nunca me dei conta da existência das mitocôndrias e da importância delas na vida dos animais, nós incluídos. Pode ser que eu tenha faltado à aula de biologia no dia em que o professor ensinou mitocôndrias. Ou, então, eu lá estava e enquanto ele falava, eu delirava com o príncipe encantado que, afinal, nunca me apareceu.
Mas, por sorte, temos o Dr. Drauzio Varella para nos explicar como só ele sabe que quando comemos demais, as mitocôndrias, coitadas, trabalham demais e do trabalho delas resulta a produção dos radicais livres, nossos inimigos, na medida em que são agentes do envelhecimento. Se bem entendi, o ato de comer sempre desencadeia o trabalho das mitocôndrias. Se comemos pouco, elas trabalham em paz e, na paz, não soltam os radicais livres em exércitos ameaçadores. Se metemos o pé na jaca, elas são obrigadas a acelerar o ritmo e, em contrapartida, aumentam a produção dos tais radicais que, na programação biológica, são livres para acabar com a saúde da gente. Em resumo, o Dr. Drauzio adverte: quem come mais do que pode, envelhece mais cedo, fica doente mais cedo. E agora, depois desta revelação, o ato de radicalizar na liberdade de comer passa a acarretar também a culpa pelo sacrifício imposto às laboriosas mitocôndrias. Bem, das culpas, a menor. Foi muito bom saber que liberar geral com a comida afeta as pobres mitocôndrias, obriga-as a trabalhar em regime de estresse, praticando ato de violência contra elas. Melhor ainda foi saber que as mitocôndrias não são bobas e se vingam da tirania da gula, soltando os cachorros na praça, os tais radicais livres que detonam a vitalidade do carente que faz de conta que a comida traz felicidade.
Dr. Drauzio, muito obrigada!

Monday, October 30, 2006

Sem precisões


Sem nenhuma convicção, você vai acordando e escuta ao longe uma gargalhada. Neste instante se dá conta de que ainda está neste mundo e do quão esquisito é o ser humano. Pense no quanto é estranha a gargalhada! Mais estranha ainda é esta palavra que em nossa língua nomeia o ato, com raiz proveniente de gargarejo, ou melhor, do som de gargarejar. A gargalhada é mais antiga do que o ato consciente de gargarejar para limpar a voz ou a garganta. Então, depois de tanto gargalhar, o ancestral português gargarejou e chamou de gargalhada o ato de morrer de rir dos outros ou de si mesmo (algo, aliás, bastante recomendável). Tudo esquisitice! Mas, esquisitice mor é acordar pensando nestas coisas só porque se ouviu uma gargalhada perdida na manhã de um certo domingo em que se tem de sair para eleger o Presidente da República.
Não desanime. Você está obrigado a acordar porque viver é preciso. Navegar é que não deve ser preciso. Se você resolve conduzir a vida com muita precisão corre o risco de asfixiá-la. Tome cuidado com as rotinas e com as obrigatoriedades, formas de precisão. Tome cuidado com as manias e principalmente com tudo que lhe seja imposto com rigor e determinação.
O voto é obrigatório. Como fazer, então, se há restrições a todos os candidatos? O problema reside na obrigatoriedade de votar, ou seja, na precisão, na exatidão de conduta cívica que lhe é exigida. Absurda é a lei que dá peso idêntico ao voto em branco e ao voto nulo. Se o voto é obrigatório, o nulo deveria ser considerado uma opção. E, assim sendo, os votos nulos não seriam deduzidos para a obtenção dos votos válidos. Deduzir-se-iam tão somente os brancos. Este seria o critério mais respeitoso à liberdade de cidadania.
Mas, o tema aqui não era a cidadania nem era o voto. Ou era? O tema era a gargalhada? Era o ser humano? Era a rigidez das precisões? Sei lá... O tema é sempre a vida, incluídas a cidadania, a estupidez, as precisões... Incluídos o gargarejo e a gargalhada. O tema pode ser toda sorte de condutas inventadas pelo homem. Tomar remédio para dormir e para acordar, pensar de forma binária, eleger líderes, mandar, obedecer, bajular, criar regras e a mania de seguí-las com renitente rigidez.
Quem será mais sábio? O velho que se confina na rotina e se ajusta no seu lugar, seguindo os padrões sociais exigíveis ou o velho (mais provavelmente a velha) que, no alheamento da demência, se rebela, se nega a tomar banho, repele a lavanda pós-banho e pede urgência para o juízo final?
Oh, que falta nos faz uma natural predisposição para a liberdade! Que falta nos faz vocação inata para nos reinventar, assim como natural, embora esquisito, é o ato incontrolável de gargalhar.

Friday, October 27, 2006

"Mareguia"


Não seria nada mal voltar a morar no Arpoador.
Porque o mar do Arpoador é mais bacana que os outros.
É mais sábio, mais solene e acolhedor.

No mar do Arpoador não sou banhista
como os que se afogam em dores e quebrantos.
Lá vou de corpo e alma e se pudesse todo dia.
Um mergulho só e pronto: o mar sabe todo o meu pranto.

Porque em linguagem telepática me cconfesso.
E o mar me acolhe e me benze com divinas maresias.
E me ouve e é meu guia.
E a mim me explica, me alforria!
É meu pai, minha alegria.

Thursday, October 19, 2006

Um poema de Adélia Prado


FLUÊNCIA

Eu fiz um livro, ma oh, meu Deus,
não perdi a poesia.
Hoje depois da festa,
quando me levantei para fazer café,
uma densa neblina acinzentava os pastos,
as casa, as pessoa com embrulho de pão.
O fio indesmanchável da vida tecia seu curso.
Persistindo, a necessidade dos relógios,
dos descongestionantes nasais.
Meu livro sobre a mesa contraponteava exato
com os pardais, os urinóis pela metade,
o antigo e intenso desejar de um verso.
O relógio bateu sem assustar os farelos sobre a mesa.
Como antes, graças a Deus.

Wednesday, October 18, 2006

Sempre o vento e as amendoeiras


Saí da terapia na segunda-feira e resolvi trocar o “Foguinho” por uma caminhada pela Atlântica. Sentia-me tranqüila e bem disposta. Logo percebi que as amendoeiras se alegravam ao vento e que se anunciava uma noite acolhedora. Foi quando me lembrei de cena da infância em Paquetá: o passeio pela ilha após o jantar. Outras famílias cultivavam este hábito à fresca da noite. Então, voz aqui, risadas acolá e o som do vento em conversas com as amendoeiras, quebravam o silêncio das ruas, sem abalar a harmonia que emanava dos jardins. Em uma hora, tinha-se toda a ilha mais ou menos percorrida, passando-se pelos mistérios da “Maria Gorda” e pelas fantasias da casa de “A Moreninha”, que ficava perto da casa de tia Iaiá, onde anos antes minha secular família se reunia.
A imagem do passeio noturno pela ilha, eu menina de braços dados com Tia Marieta, o vento, sempre o vento agitando as amendoeiras, me deu vontade de escrever, ali mesmo, no tapume da obra do César Maia. E nesse momento me dei conta da imensa liberdade que há no mero desejo de escrever. E o que dizer então do ato da escrita consumada, uma escrita mais liberta ainda como a de Lispector, de Adélia, de Manuel de Barros e de Guimarães Rosa?
A liberdade de escrever é como o vento que anima as amendoeiras: inspira vida e traz em si o direito fundamental de transcendência, termo aqui empregado na acepção da filosofia existencialista, segundo definição do Houaiss: “ação por meio da qual a existência humana ultrapassa a sua realidade imediata e alcança a temporalidade inaparente e a liberdade”.
E assim, naquele começo de noite, sob as amendoeiras ao vento, transcendi à materialidade dos meus passos de obediência ao cardiologista e me libertei no desejo de escrever.

Thursday, October 12, 2006

Maria, Maria...


A Maria promete. Quem viver, verá.
Linda, animada, afinada, ritmada,
Esperta, ativa, inquieta e desafiadora,
Projeto de mulher que não se deixa dominar.
Ao mesmo tempo, meiga, amiga, carinhosa,
Quem sabe, a Rosa do Chico Buarque,
Que coisa mais amorosa!

Tuesday, September 19, 2006

Feminismo e maternidade


O texto seguinte foi escrito em 28.02.1991. É do tempo da Lettera, máquina leve e elétrica usada para datilografar. Revisei-o, tentando preservar o sentido e a redação original. Aí vai.

Fui mãe pela primeira vez em 1970.
Para certas mulheres de minha geração casar e ter filhos não era mais o único caminho de vida a seguir. Para nós, graduadas nas vivências da vanguarda do ME que sacudiu o Rio em 1968, não mais se desenhava um futuro do tipo “chinelo na mão e avental todo sujo de ovo” (trecho da música “Dia das Mães”, de David Nasser e Herivelto Martins). Os ecos da contracultura e do feminismo chegavam ao Brasil, convidando-nos a ultrapassar nossos limites. Fomos tomadas pela reflexão sobre os conflitos de nossa época. Não dava para continuar padecendo em silêncio para ser reconhecida como mulher de verdade. Nossa geração, aliás, veio para questionar verdades, fazer revoluções. Era preciso repensar a família e o falso paraíso que chamavam lar.
Fui mãe pela segunda vez em 1973.
A essa altura, reinava uma grande confusão. Rejeitáramos o modelo tradicional de mulher e de mãe. O feminismo acontecera na Europa e nos Estados Unidos, onde mulheres em grandes manifestações de rua reivindicavam a legalização do aborto. Era a hora de dizer não à dominação patriarcal. Queríamos mulheres ocupando espaços na vida pública. No Rio e em São Paulo, em pouco tempo, estaríamos mobilizadas. A escritora Carmen da Silva já nos provocava (e fazia tempo!) com informações e debates na revista Claudia, repensando a arte de ser mulher. Apesar dos reboliços em nossas cabeças, continuávamos a celebrar rituais de casamento, a parir, reproduzindo na dinâmica da vida atitudes os valores do velho modelo. Era difícil viver confrontando o tempo todo e manter no plano privado o tom dos nossos questionamentos públicos sobre a condição da mulher. Queríamos acabar com a família. Mas, nos casávamos e coninuávamos a constituir família com direito a marido, crianças, avós e bichos de estimação. De seu lugar tradicional, os maridos não padeciam de inquietações. Não incluíam em suas agendas o cotidiano do lar. Sobrara então para nós o trânsito aflito por estes mundos antagônicos que mal cabiam nas 24 horas do nosso dia. Em 1975, a ONU proclamou o Ano Internacional da Mulher. Era preciso agir. Criamos o Centro da Mulher Brasileira. E à nossa já tumultuada rotina somou-se a mais nova e importante tarefa: o movimento de mulheres. O CMB, situado no Castelo, era o era o palco de envolventes debates que consumiam as nossas tardes de sábado.
Fui mãe pela terceira vez em 1978.
Analisamos nossas leis e percebemos que, feitas pelos homens, em seu conjunto, serviam à manutenção da ordem patriarcal. Construímos a teoria da igualdade de direitos e elaboramos propostas de projetos de lei que levamos ao Parlamento em Brasília. Nosso discurso ganhou auditórios, avenidas e mídia. Denunciamos a exploração da mulher trabalhadora, a dupla jornada, a chefia dos homens na sociedade conjugal. Reivindicamos a criação de equipamentos coletivos - creches, restaurantes e lavanderia populares – que permitissem às mulheres assumir os compromissos da vida pública. Organizamos grupos de reflexão, encontros e congressos, como faziam as feministas no resto do mundo.
Nos primeiros anos do movimento, alguns temas permaneciam intocáveis. Éramos em maioria mulheres de esquerda vinculadas a partidos políticos ainda clandestinos. Até então, não nos assumíamos como feministas. Não falávamos abertamente em aborto para não romper a frente ampla tecida nos tempos da ditadura militar, ainda de prontidão. Não podíamos ser o pivô do rompimento da antiga aliança da esquerda com a Igreja.
Debatíamos exaustivamente. Brigávamos, disputávamos poder. Quanta energia consumida em indagações do tipo homens devem ou não participar das nossas reuniões! Íamos para as discussões, duras, amarradas, com os sentimentos travados e o corpo fechado, tal como vão os homens, especialmente para as suas atividades públicas. Havia o medo de sermos confundidas com homossexuais. Nas reuniões do CMB, era freqüente o conflito entre nós, as mulheres da esquerda, e as feministas descompromissadas com deliberações partidárias. Branca Moreira Alves, Carmen da Silva, Rose Marie Muraro, Danda Prado, Ligia Rodrigues, Jacqueline Pitanguy, dentre outras, eram as feministas e estavam, sem dúvida, à nossa frente em termos de formulação sobre a condição da mulher. A verdade é que nós, as de esquerda, nos sentíamos inseguras, enquanto as feministas nos desfiavam a romper com as exigências partidárias e com o comportamento homem de esquerda.
O fogo daquela paixão nos consumia e tínhamos já alguma consciência de que só o fato de estar ali reunidas com mulheres já significava um certo rompimento às submissões partidárias. Nossa missão era libertar as mulheres. E a tarefa incluía libertar a nós mesmas, construir novas formas de organização não plasmadas na hierarquia machista. O CMB não poderia ter uma Diretoria e sim um colegiado. Era preciso aprender a ser feminista em atitudes, palavras e gestos. “Oh! Mãe me explica me ensina/me diz o que é feminina?”
O movimento em sua intensa dinâmica foi nos fazendo a cabeça. E já no limiar da década de 80 agíamos sem dar maior importância à aprovação de nossas respectivas organizações partidárias.
Em fins de 1979, grávida sem saber, fui ao Jornal da Globo para pedir a descriminalização do aborto em nome do movimento feminista do Rio de Janeiro. A maternidade entrara em pauta por sua dimensão mais transgressora e conflitante: quando é para dizer não. “A maternidade não pode ser uma fatalidade biológica”, declarou Branca Moreira Alves que comigo participou da entrevista. O tema aborto nos levou a formular os direitos da concepção, tendo em foco o direito de escolha da mulher quanto a ter ou não filhos.
Fui mãe pela quarta vez em 1980.
Era o momento da mais intensa militância feminista no Rio de Janeiro. E como foi difícil dar o peito em paz ao meu filho! O telefone não parava de tocar. Eram as amigas a me convocar para reuniões, passeatas, etc. Eram conversas intermináveis sobre táticas, novas propostas e também sobre as fofocas dos bastidores.
A cesariana já havia substituído o poder natural de parir, instituindo-se como procedimento de rotina. O parto e o aleitamento materno jamais haviam sido objeto de nossos debates. Um marketing bem sucedido nos convencera de que o leite em pó, este sim, seria o melhor alimento para nossos bebês, com a vantagem de nos libertar para as atividades profissionais e tudo mais que nos foi dado a protagonizar naqueles tempos modernos. Não víamos o aleitamento como um problema específico de mulher (assim denominávamos os temas que se diferenciavam das lutas gerais da esquerda).
Em 1983, junto com a ginecologista Tânia Costa Rego, promovi o encontro de Carmen da Silva com as Amigas do Peito, grupo récem-criado e destinado a incentivo do aleitamento natural. Autorizadas pela receptividade de Carmen aos propósitos do movimento, as Amigas do Peito passaram a ocupar a comissão de frente de nossas passeatas do 8 de março com seus bebês. O fato causou revolta em algumas feministas que não viam aquele trabalho com bons olhos. Achavam que a presença delas na passeata roubava a cena e contrariava nossos objetivos feministas. Achavam o movimento das Amigas um retrocesso, uma forma de levar as mulheres de volta para o confinamento doméstico. É bem verdade que as Amigas do Peito emolduravam as nossas passeatas mas jamais participaram do Fórum Feminista do Rio de Janeiro, coletivo de onde saia tudo o que acontecia no movimento.
Hoje em dia já penso na possibilidade de ser avó.
Já se fala em pós-feminismo. O movimento traz no corpo essa marca de criar, refletir e transgredir suas próprias verdades, antes mesmo que sejam compreendidas.
Embora afastada da militância, continuo apaixonada pela causa das mulheres, por suas histórias, suas contradições, seus poderes e magias. Não me sinto pós. Mas sei que o feminismo já não é mais o mesmo. Mudou a linguagem e cresce a tendência a uma prática mais abrangente, pensando-se a mulher como um ser da natureza a inspirar preocupações ecológicas. Talvez seja agora primordial a idéia de salvar o planeta.
Não sei se superei minhas atitudes inspiradas no modo masculino. Mas, sinto-me mais harmonizada e quero integrar minhas ricas vivências, ainda que em andamento bem mais lento. Participo de encenações teatrais levadas às ruas no Dia Internacional da Mulher e sinto o maior prazer em encontrar minhas companheiras de aventuras feministas. Permito-me chegar mais cedo em casa. Experimento cozinhar com algum prazer, buscando novas receitas e é cada vez mais gostoso dar o peito às histórias dos meus filhos, compartilhando suas inquietações, temores e alegrias.

Thursday, August 31, 2006

O Perfume de Rachel

O Perfume de Rachel

De um jeito meio atabalhoado, vim morar perto do mar. Precisei de um lugar mais amplo onde pudesse acolher minha filha que saia apressada com bebê e babá de um casamento mal sucedido. O prédio surrado, faixada inspirada em estilo art déco, pareceu-me a solução. Mas, o que não vi na curta visita com o moço da imobiliária, ficou claro na permanência dos primeiros dias: infiltrações na cozinha, portas sanfonadas nos banheiros que era o mesmo que não haver porta alguma. Nem a varanda, diga-se simpática, me conquistou. A rua invariavelmente emporcalhada eu também detestei. Durante quase um ano foi o barulho infernal da obra do prédio ao lado. De noite, é a balbúrdia dos lixeiros e o ronco do caminhão do lixo. É quando o cheiro do peixe servido nos restaurantes da orla funde-se ao fedor do peixe do lixo a se acumular nas calçadas, insólita alquimia de odores a invadir a intimidade da casa.
Na primeira semana, ficou claro que eu me equivocara na escolha. Já em pleno arrependimento, lembrei-me de que Clarice Lispector morou neste bairro. Fiquei toda animada com a possibilidade de ter sido exatamente no apartamento que acabara de alugar, fantasia que minhas pesquisas não confirmaram. O prédio ficou então resumido à insignificância de uma edificação mal cuidada, cujo estilo, em verdade, pode ser definido como art de cocô.
Certo dia, aqui por perto, encontrei a Rachel Gutiérrez. Eu já pensava em Clarice quando ela me puxou pela mão e disse:

- Venha ver uma coisa. Será rápido. Sabes que Clarice Lispector morou aqui...
- Sim, sei... Tudo o que eu queria era que tivesse sido onde moro... Ali...
- Não, não foi ali. Vamos lá... Mostro-te onde foi. Consegui convencer o Síndico e a Prefeitura da importância de colocar uma placa com o registro histórico da passagem de Clarice pelo bairro.
- E o que você não consegue com essa sua determinação de mulher gaúcha?
Na portaria do prédio, bem à vista dos passantes, lá está a inscrição:


“A palavra é a minha quarta dimensão”

Clarice Lispector
1920-1977

“Consagrada entre os grandes escritores do século XX, publicou crônicas, contos e romances.
Morou neste prédio de 1966 a 1977.”

Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
Secretaria de Cultura
Departamento Geral de Patrimônio Cultural

1996

Passou-se o tempo e nunca mais encontrei a autora da homenagem.
Noutro dia, aparece-me um advogado a requerer algo indeferível, apresentando-se como primo de Rachel, que, segundo ele, era minha e amiga e vizinha e havia falecido. Como!? Falecido!? Não pensei em outra Rachel que não fosse a Gutiérrez. Que disparate estaria o homem a dizer e eu a pensar? Tornou-se então urgente ter notícias de minha companheira de aventuras feministas, Rachel, pianista, poeta, escritora, tradutora, estudiosa da obra de Clarice Lispector.
Para meu alívio, a notícia não tardou. Passados uns dias do papo sinistro, lá vejo a Rachel toda viçosa, entre frutas e hortaliças na feira de nossa rua. Tivemos uma conversa rápida, nos limites da eventualidade de nossos encontros.
“Feira é cultura”, saiu-se com essa o feirante! Sim, é cultura e palco de esclarecimento de histórias obscuras, complementei.
Cada uma de nós seguiu o rumo dos respectivos afazeres. Mas o perfume de Rachel me ficou na face pelo resto da manhã, a lembrar o quanto é bom estar viva e com saúde, perto do mar ou em Brás de Pina.

Rio, 31 de agosto de 2006

Friday, August 11, 2006

Lua de Agosto

Nem um traço faltava para completar o desenho de sua forma exata.
A Lua Cheia de hoje fez décor para o caminho de volta ao Rio de Janeiro.
Brilhou num céu ainda tão claro, sem sinal de estrelas, que parecia ter se antecipado à noite, confundindo o crepúsculo, insistindo na permanência da tarde. Nada mais que a plenitude da Lua acontecia na Linha Vermelha. Ninguém sangrou. Caminhamos em paz porque a Lua íntegra fez-se estrela-guia. E do céu assim tão enfeitado vinha uma esperança de dissipar desalentos.

Rio, 8 de agosto de 2006

Tuesday, July 18, 2006

Sexo na novela das 8

Pessoas se dizem chocadas com o depoimento exibido ao fim de capítulo da novela "Páginas da Vida", no qual uma anônima senhora fala do seu orgasmo e de como passou a atender sozinha às suas demandas sexuais, sem necessidade de homem, depois que, certa noite, ouviu a canção "O Côncavo e o Convexo", do Roberto Carlos.
A edição não me chocou. Apenas me surpreendi com a coragem daquela senhora em se consentir sair do anonimato e expor sua intimidade aos milhões de telespectadores da "novela das 8".
Quem se diz chocado com o referido depoimento, mesmo sem assumir preconceitos, celebra a hipocrisia e reforça a mais cruel forma de machismo, qual seja, a de manter em silêncio as mulheres, no que toca aos seus prazeres ou desprazeres com o sexo.
Não se vê gente chocada com as cenas de violência que a TV Globo religiosamente exibe às segunda-se feiras, no tradicional “Tela Quente”. A sociedade se permite espiar a violência, não só a da ficção, como também a das notícias, com toda aquela liberdade concedida à imprensa para selecionar a matéria editável e para relatar os fatos como bem entenda.
Não é de hoje, cenas de sexo são normais nas novelas da Globo, mesmo no horário das 7, quando as crianças ainda circulam frente à TV. Então, se é bom espiar sexo na TV, por que não será permitido falar de sexo, fora daquele programa de utilidade da simpática Srª Johanson?
O fato é que as pessoas se dizem chocadas porque ouviram um depoimento que foge aos padrões do sexo consentido nas imagens de TV.
O fato é que as pessoas não autorizam a uma mulher de 68 anos falar de seus orgasmos e, de quebra, desconstruir o dogma secular de que o prazer sexual da mulher provém de única fonte: o homem.
O autor da novela não deveria dar ouvidos aos que se dizem chocados com o depoimento. A edição não foi chocante nem despicienda, pois faz um bom contraponto à fala da personagem Carmen que, no mesmo capítulo, embora se declarando infeliz no casameno desde a noite de núpcias, afirma que "não sabe viver sem homem".
O corajoso depoimento da senhora que ainda sente o pulsar do sexo apesar da idade (coisa mesmo rara!) e não precisa de parceiro para delimitar diferenças sensoriais entre "o côncovo e o convexo" nos remete a uma seríssima reflexão sobre sexualidade feminina e sobre relação homem/mulher. Aí está um bom serviço que, ficção à parte, a novela "Páginas da Vida" já prestou e pode continuar prestando às mulheres.
O resgate da auto-estima e a liberdade de agir é tudo que as mulheres sempre precisam. Parabéns ao Manoel Carlos e à TV Globo pela colaboração e pela ousadia, por assim dizer.
Em 18 de julho de 2006

Friday, June 09, 2006

Mulher

Minha filha criou a definição “mulher que dá flor”, para dizer da moça recém ingressa em nossa família. Tanto caiu bem à moça tal “classificação”, que ela já traz no ventre fruto de relacionamento tão recentemente iniciado com meu filho. Nada condizente com padrões de normalidade procriativa. Mas tudo a ver com responsabilidade pelos próprios atos, com decisão pautada pela boa coerência entre razão e sensibilidade. Gostei da idéia mulher que dá flor e logo pensei no seu oposto: mulher que dá espinho.Na conversa, deixamo-nos claro que nossas metáforas nada têm a ver com a reafirmação de esteriótipos antagônicos que atribuem e tiram valor da mulher, tais como a generosa/a malvada, a bela/a feiosa. Não. Para nós, a mulher que dá flor é aquela de bem com a vida, ciente de si, responsável por seus atos, aberta aos desafios. É a que se permite amar sem subserviências. É a que pode ser solidária sem se sentir lesada. A mulher que dá flor enraíza. A mulher que dá espinho se confina em exterioridades. Seu espelho só reflete aparências. Ela não consegue respeitar os outros porque não sabe se respeitar. Precisa dos espinhos para cercar suas amarguras, para se defender da possibilidade de entregas afetivas. Para não incorrer em polarização nefasta, digamos que estes tipos coexistem em cada uma de nós e tudo seja uma questão de saber dosar. Usar os espinhos para a defesa dos perigos e das roubadas. No mais, gerar frutos bons de todo tipo. Parir flores resplandecentes para que a positividade seja, quiçá, a marca de toda a vida.

Wednesday, May 24, 2006

Recordando Gloria Horta

"Minha filha, eu quero ser um bom exemplo.
Nunca de perfeição nem de coerência.
Nunca de bom comportamento e normalidade,
mas de originalidade e amor.
Você, e só você, poderá gerar todas as minhas sementes.
Fazer brotar ao nosso redor,
até onde a vista alcança,
vestígios de um mundo melhor.
Quero te ensinar a amar a liberdade,
a arrancar a felicidade possível
que existe por trás das cortinas e dos padrões.
Ah! minha filha eu quero ser um bom exemplo
e só tem um jeito: eu ser feliz."

Tuesday, May 23, 2006

Ruídos

O razoável silêncio da rua na madrugada não condiz com minha ruidosa mente.
Pensamentos gostam de ter vida própria e por isso sempre ocupam impróprio espaço, quase se corporificando onde a gente se encontre. Chato é ser a dona do pensamento. Se ele não é claramente visto onde quer que ocorra, a mente que aluga tem presença física. É parte de um corpo que se vê ocupado a virar na cama, a sobrar na cama, a brigar com o sono. O silêncio de fora - coisa rara - é violado pela insistência da mente em permancer ligada. Um sonzinho enjoado de máquina acesa em stand by atropela a paz da madrugada e impede a percepção do canto do mar, vizinho até então desprezado nesse bairro em que não me vejo, não me acolho. Problemas de de conexão? Não sei explicar. Só sei que nem de noite, nem de dia me sinto aqui.

Thursday, May 18, 2006

Oração para noite de tempestade

Oh, Senhora Santa Bárbara!
Mande a força dessa tempestade para o meu plexo.
E a tua luz açoitando a mais obscura noite há de remover minhas certezas.
Oh, Mãe! Conto com a fúria dos teus ventos.
Transpasse-me.
Abençoe-me.

Die Valhalla

Nessa noite pode ser que eu leve a coça da mania de estar só. Pela primeira vez pernoitarei só no meu olimpo, cercada de mato por todos os lados. A moça da limpeza já se foi. A partir de agora sou eu e o silêncio de palácio que já amplifica o farfalhar da ramagem convulsa. E que não me apareça o caseiro, pé ante pé, para limpar sei lá o quê e me matar de susto antes da noite. Também não precisava essa ventania de morros uivantes, nem esse frio fora de tempo a me assanhar o medo. Quem sabe um chá agora para aquecer o peito e chamar o sol vespertino ao pátio? Quem sabe a noite se faz azul? Que caia a noite sobre o Vale do Ribeirão. Não é que um soar de vassoura em ação vem do quintal? Dito e feito. Lá está o caseiro a varrer a rampa em meio à ventania. Só pode ser para me assustar. Mas não me assusta. Será que veio conferir se estou só? Será mesmo homem de confiança? Será este lugar um paraíso a salvo da violência reinante? A velha só em seu Valhalla não desafiaria a maldade do caseiro? Esse vento, ai, esse vento, é sonoplastia certa para cena de um crime. Lembra-me o medo que me assaltou naquele hotel em Verona (e ali em verdade havia o risco de estar só). E lá se foi toda a noite na espreita de que o iraniano seco de olhar saliente me aparecesse pelos balcões dos quartos geminados. Sei lá se era medo ou desejo. Mas esse tipo de ambigüidade pertence ao passado. Hoje, nem o exotismo do iraniano me despertaria alguma fantasia. De vez em quando, a geladeira faz um estalido. Já se sabe. Mas bem que uma surdez temporária me ajudaria a passar a noite sem sobressaltos. Os mais apavorantes medos vêm dos sons da noite. Quantas vezes já não acordei de pesadelos em que um bicho horrendo me persegue por conta do ronco dum motor na madrugada? Fechei todas as portas e janelas. A noite enfim chegada não aplacou a lamúria dos ventos. Ao contrário. O gemido das lufadas crescia sobre meu estado d’alma. Havia a opção de me trancar no quarto. Isso não resolveria o problema dos ventos. Mas teria me poupado do medo do escuro que devassa o interior da casa com a planejada permissão das vidraças. Arquitetos valorizam a vista para o verde, sabem que a mata vive no seu desfrute, sem a intenção de assustar mulheres sós. Mas não levam em conta os açoites de uma noite lúgubre que tem as vidraças da sala de estar como aliadas. Ir surda ou sedada para a cama seria sucumbir ao medo. Foi quando ouvi vozes wagnerianas e aceitei o desafio. Já que as primeiras cenas da noite se passariam na sala do meu Valhalla, invoquei a guarda de Brünnhilde. “Die Walküre”, Bayreuther Festspiele, 1980. Ao final do primeiro ato, num dos mais lindos duetos de amor da história da ópera, o revelado amor dos gêmeos Siegmund e Sieglinde desvia meus olhos aflitos das vidraças e faz a sala soturna de Hunding se abrir para um jardim de lua cheia. Segue a zanga de Wotan a calar o vento que agita as colinas. Sua consciência de finitude afugenta os meus fantasmas. Wotan não releva a pena cometida a Brünnhilde, proscrita do Valhalla, condenada a ser só uma mulher. Mas a lealdade de Brünnhilde inunda o coração de Wotan. A força da Walquíria me infunde coragem. Entregue àquela música como se fosse pela primeira vez, minimizei os efeitos da noite na tela dos meus temores. Por fim, foi para mim que Wotan invocou os poderes de Loge. E todo o vale se iluminou. Wotan atende ao pedido de Brünnhilde e carinhosamente nos põe a dormir aqui no alto da roca. No silêncio do sono protegido segue a vida em suas eternas alternâncias, medo, coragem, poder, declínio, fogo, ventos, calmaria, solidão, companhia, verdades, fantasia, noite, dia, crepúsculos cada vez mais belos, obra dos deuses, arte e magia. Itaipava, 30/03/2006

Sem fome

Não mais me pergunto - "você tem fome de quê?". Não é mais tempo de nomear carências. De que serve um mar de inquietações, se nem sempre há ouvidos para as respostas? Hoje prefiro ler as respostas na plenitude dos vazios. E basta um cenário de tons outonais para guardar ao fundo o meu baú de mensagens não lidas.