Thursday, June 16, 2011

Portugal, minha viagem




" ...tudo é água, tudo é água que corre
De cada vez que nos morre
Nasce um pouco mais além ...”

(“Paixões Diagonais”, música de Miguel Ramos, letra de João Monge
Do CD “Paixões Diagonais” da cantora portuguesa Mísia)


No tempo em que nasci, dizia-se que os bebês eram trazidos pelas cegonhas. Prefiro inventar que comigo tenha sido diferente. Um veleiro dos mais antigos partiu da cidade do Porto com a missão de entregar-me no Rio de Janeiro, onde eu deveria ganhar um corpo e seguir destino. Acho interessante o experimento de chegar-se ao reino da vida pelo caminho das águas, invertendo-se o  mito do barqueiro mobilizado para conduzir as almas ao reino da Morte.
E o deus que me soprou a vida foi rigoroso: conferiu ao comandante do veleiro uma incumbência extravagante: desse ele um jeito de que Portugal, de algum modo, ficasse inscrito em minha identidade. E mais. Que as ondas de minha vida em suas tantas voltas, de algum modo, viessem a ligar-me a Portugal por elos profundos.
Seja por intuição ou pelas velhas ganas desbravadoras, o barqueiro conduziu-me ao berço certo. Meu pai, Henrique, descendia de um Manuel de Souza que chegou à Bahia em 1764. Como já havia um patrício de mesmo nome estabelecido na localidade, ele passou a ser chamado Manuel de Souza Porto, pois da cidade do Porto procedera. Um de seus filhos nasceu no dia de São Marcos e teve em seu nome acrescentado o “Marques”. Toda a prole deste Manuel Marques de Souza Porto já veio sem o “Souza” e sem o “de”. E assim formou-se o sobrenome “Marques Porto” que percorreu gerações, chegando à minha de modo intacto. Quando nasci, era também comum prestigiar parentes, dando aos filhos os nomes deles. Assim, em homenagem a uma das irmãs de meu pai, ganhei o nome da jovem virgem santificada por sua história de bondade, coragem, abnegação e suplícios, coisa própria da Idade Média.

Em minha casa paterna não se ouvia falar em viagens, salvo a do malfadado Titanic, cuja história meu pai adorava contar e a cada vez que a repetia nos parecia mais funestamente fantástica. Vivíamos de modo modesto. Eu jamais seria mandada para estudar no estrangeiro. A Disneyland veio a ser inaugurada em 1955, quando a numerosa prole de meus pais já se constituíra, deixando de haver suporte econômico para proporcionar tal tipo de lazer para miúdos.

Por toda a minha infância e anos adiante, Portugal só me chegava como longínqua referência, seja nas manhãs azuis pelo pregão do tripeiro, seja nas tardes amenas pelas portuguesas de meia idade que batiam ao portão a vender panos bordados na Ilha da Madeira. O tempo ia passando e os “desígnios” de meu destino não se confirmavam. Portugal mantinha-se ligado à minha pessoa só mesmo pela aparente formalidade de nome e sobrenome.

Até que nos meados dos anos 90, passei a fazer parte de um grupo de ouvir música.  A escolha do gênero era livre. Apenas convencionamos que a música deveria ser boa. Não por acaso, havia entre nós consenso quanto ao que se pudesse entender por “boa música”. Pronto. Fazíamos o melhor com o maior prazer. Os encontros eram mensais. Quem estivesse escalado para preparar o programa recebia em sua casa, incumbindo-se também dos comes e bebes. Do grupo fazia parte um casal que deixara Lisboa no rescaldo da Revolução dos Cravos. Pessoas cultas, gentis, que aqui acabaram de criar os filhos de modo perfeitamente integrado ao clima de liberdade vivenciado no Rio.

Nossas tertúlias seguiam ótimas. Em 1997, os amigos portugueses sugeriram que fizéssemos um encontro na Quinta de propriedade deles. Uau! Assim, seguiu-se um roteiro cultural e gastronômico carinhosamente preparado pelos anfitriões. Começamos pela cidade do Porto e terminamos em Lisboa. A meu pedido, Santa Comba Dão foi incluída na rota, um mimo do grupo, já que a aldeia não despertava ao coletivo maior interesse.  

A apresentação musical no campo foi realmente linda, mágica. Não faltou uma Lua Cheia imensa a pratear as folhas das oliveiras do pátio à entrada da casa. Não faltou a reverência da brisa para que ruído algum se opusesse ao livre passeio da música que se alargou em direção aos montes, às videiras até se fundir com o canto vigoroso das águas do Douro. O passeio ao rio, ao cair da tarde, foi  para mim o momento mais marcante de toda a viagem. As altas encostas vistas do leito por onde o pequeno barco seguia exibiam lindos tons de verde. Um silêncio contemplativo nos envolvia, mas algo mais forte me tocava. Seria o barco? Seria a sensação de estar sendo transportada à predição de meu destino? Talvez, intimamente, eu soubesse que esta viagem a Portugal, mais que um giro turístico, era o prólogo de um vínculo mais profundo que em breve se anunciaria.

Não passou muito tempo e meu filho caçula vivia um envolvente caso de amor com uma cantora portuguesa aportada em nossos costados por conta de um casamento fracassado. Passados uns dois anos de namoro, ela resolveu voltar para a sua charmosa Cascais e, por volta dos meados do ano 2000, partiu em silêncio e grávida.  

Não quero me alongar nos detalhes dessa história. Cada vez mais perdem importância, pois uma linda menina veio para recriar antigos laços familiares entre Portugal e Brasil. De um modo definitivamente amoroso, cumpria-se o meu fado.

Olho a vida em retrospectiva e constato que pouco viajei. Não sou das malas, das andanças e muito menos dos tênis. As ondas da vida não me levam ao turismo. Mas não me queixo. Sempre fui dada a “viajar” mesmo sem sair de casa.  Viajar, por exemplo, na leitura de um bom romance. Ah! Encanta-me! Isso eu recomendo. Portugal foi um caso à parte. Outras vezes lá voltei – assuntos de família. Lembro agora, numa dessas viagens, era domingo, fazia um céu azul convidativo ao passeio. O casal dormia, a pequena também, enquanto eu, de bom grado, resolvi lavar a louça acumulada de véspera. Estava em Portugal, estava em casa. Da janela, via ao longe entre as vielas, miúdas e alvas flores. Tomo-as agora como símbolo dessa história, dessa viagem que em verdade é uma só. Um só fluxo de vida em que o porto de partida pode ser, ao mesmo tempo, origem e transcendência.