Thursday, August 11, 2011

Da série "Histórias de Irina Terkov"



-I-

Depois de tantos giros por relacionamentos, viagens, compromissos, Irina Terkov escolheu a ilha de Naxos para ser o palco do terceiro ato de sua vida. Da janela de sua sala tinha boa vista do mar Egeu. Contava as ondas, os barcos, divertia-se com a mesmice dos turistas, contemplava o encontro do céu com a terra e pensava em escrever sobre o sentido filosófico da imagem do horizonte. Ocupava-se de reflexões assim tolas, mas sem culpa. Entregava-se à liberdade de pensamento sugerida pelos azuis mediterrâneos. Tempo de sobra havia. A vida corria sem atribulações. Tinha o silêncio como parceiro. Seu destino se confirmava como ela o sonhara: ter por perto o mar. Sua casa situava-se um pouco abaixo do Monte Zas, onde nasceu Zeus, ponto mais alto da ilha. Mesmo assim, de lá era possível ter ampla vista da cidade em seu declive até o mar.
Irina se encantara com a Turquia e agora, residindo na Grécia, era mais fácil revê-la. De lá, há muitos anos, trouxe um pequeno bule de cobre. Daí em diante, nas cidades onde se estabeleceu, o bibelô ficava exposto ao alcance dos olhos. Era um mimo, um presente que se dera numa manhã sem importância, quando caminhava pelo centro de Istambul. Uma referência não do lugar, mas de si mesma, do seu prazer de andar às soltas, no exercício do ofício de jornalista e escritora, quando teve o mundo como seu quintal.
Em certa tarde, quando o sol já se preparava para o recolhimento, viu-se atraída pela cor forte do pequeno bule, iluminado pelas últimas tonalidades crepusculares. À medida que o mar era tomado pelas primeiras sombras da noite, o brilho da peça mais se fazia intenso. E esta visão despertou em Irina a lembrança de que preferia o ocaso à aurora e de que criara uma justificativa talvez pífia para as suas dificuldades com as primeiras luzes do dia. É que não as tinha como distintas das que marcam o poente. Sem contar os tons de cinza que igualam os dias, as horas em tantos lugares e estações do ano. Assim dormia até mais tarde, mas sempre desconfiada de que os preciosos momentos furtados pelo sono traduziam, em verdade, o seu temor de enfrentar os desafios da vida desenhados na alvorada de cada novo dia.
O charmoso bule nunca fora usado. Irina temia que o calor o magoasse. Mas, naquele momento, o avermelhado do cobre exaltado pela luz de fora pedia mais vida à peça. Irina pôs água a ferver e guarneceu o bule do melhor chá que havia na dispensa. Aproveitaria o resto de claridade natural para saborear as novidades: o antigo objeto de estimação, enfim, experimentando sua verdadeira finalidade e a prática do chá a se inaugurar como um momento de olhar para si. Se para Irina não havia aurora, que fosse o entardecer o seu momento de recarregar energias.    
Ainda bem jovem, Irina Terkov compreendeu que seu poder criativo vibrava fora do balaio da maternidade. Dedicou-se integralmente aos estudos e ao trabalho de escrever, aceitando seu jeito de ser mulher tido como incomum. Achava que a palavra solidão passara a ser usada como sinônimo linear do estar só. E o estar só nem sempre se reveste de tal peso exacerbado no som do “ão”. Tome-se como exemplo o seu caso. Ao seu modo, experimentou casamentos, mas sem jamais aprisioná-los no temor de ficar só. Hoje, na ilha, vive só, mas não se sente solitária.  
E assim, na continuidade do chá vespertino, na contemplação dos tons de cobre de dentro e de fora, Irina foi percebendo que andava descuidada da percepção de seus desejos. Era preciso identificá-los. Depois de tudo que vivera, em que parte de seu corpo agora pulsavam?  Em que gaveta da memória teriam se escondido? As respostas não moviam urgências. O tempo diria, um dia.
Certa tarde, após voltar da praça com pães, peixes, flores e frutas, Irina, como de costume, abriu todas as portas e janelas da casa para que a maresia se fizesse incenso e purificasse o ambiente. Iniciou o preparo do chá. Fixou-se na imagem do vapor a se expandir pelo bico do bule e ouviu ao longe o toque da sirene de um navio provavelmente de grande porte. Aconchegou-se em sua poltrona de leituras e adormeceu. Sonhou que viajava ao Marrocos para entrevistar Paul Bowles, autor americano do romance The Sheltering Sky. Na residência de Paul Bowles, Irina era recebida pela cozinheira, uma mulher de olhos expressivos com a ajuda do kajal. Meio sem jeito, a mulher pedia desculpas e informava que não tinha notícias do patrão, desde o dia em que ele lhe dissera por telefone que se dirigia ao set de filmagem em companhia do Sr. Bertolucci.
 - A senhora não ficou sabendo? Aqui se diz que, após a participação no filme, Mr. Paul partiu para o deserto e foi visto por último na cidade de El Ga’a.
A cozinheira servia-lhe o chá e lhe sugeria que descansasse um pouco antes de seguir o caminho de volta. Pedia licença e se retirava. Irina contemplava a decoração simples da sala de Paul. Fixava os olhos no vapor perfumado exalado pelo bico do bule. E, seguindo-se o sonho, via as tomadas finais da bela obra de Bertolucci. Com clareza incomum aos sonhos, escuta o pequeno trecho do livro, na voz do próprio Paul Bowles, como aparece no filme:       
“A morte está sempre a caminho, mas o fato de você  não saber quando ela vai chegar parece depreciar a finitude da vida. É essa terrível precisão que nós detestamos. Mas, por não sabermos, passamos a pensar na vida como um poço inesgotável. No entanto, as coisas acontecem só um certo número de vezes e um número muito pequeno na verdade. (…) Quantas vezes você vai ver a lua cheia nascer? Talvez vinte. E, no entanto, tudo parece ilimitado.”
Irina desperta com a sensação de ainda estar no sonho. Diante de si o feixe de chaves sobre a mesa, o chá, as maçãs na fruteira, o pôr do sol em tons de cobre, sua opção de vida, seus encontros não raros com os amigos à beira-mar, as lembranças das viagens, seus escritos, seus silêncios, seus desejos ainda que não nomeados, as auroras que ainda pudesse vivenciar e, por fim, a intangível linha do horizonte e o céu, sempre o céu, que lhe inspira e liberta.