Monday, November 25, 2013

Nos tempos do PCB, capítulo VI

        Em certo fim de tarde, Léo me levou a conhecer o camarada Vinicius. Não era uma reunião, nem um ponto. Era um papo. Alguns militantes das bases contestavam as diretrizes do Comitê Universitário. Era o caso do secretário político da minha base. O Léo fora a uma reunião como assistente e fez o maior sucesso com seu jeito brincalhão e sua análise política. Não deu outra: o secretário me convocou para um ponto na Praça Saens Peña e me advertiu: “mantenha-se afastada do camarada Léo. Ele tem posição contrária à da direção nacional e aquela bagunça que ele faz na reunião não é normal”. Era o caso de ter indagado: “e o que é normal nesse partido clandestino, nessa sociedade pautada pelo regime de exceção?” O fato é que, assim como o secretário tentava posicionar a base contra o Comitê, este, por sua vez, tentava se aproximar das bases. Tudo a ver com a vida partidária – debates, embates, divergências, luta interna. O fato é que não gostei do tom do secretário. Mas adorei a conversa com Léo e Vinicius.
O Léo transitava bem pelos dois mundos: vida legal como aluno (devia estar se formando, não sei bem) e clandestina como comunista. Alto, bonitão, andava com uma pasta de couro marrom, fazendo um tipo mais para mestre do que para estudante. Sabia despertar o gosto pela discussão política, incentivar o pensamento crítico e talvez por isto não fosse bem visto pela direção nacional. Léo nos visitava com frequência no pátio do Instituto de Filosofia, Ciências e Letras/UEG. Juntava gente em torno de si em animadas tardes, às sombras de generosas árvores. Aulas de cidadania e política. Não é à toa que ganhou o apelido de “professor”.     
Vinicius não podia se expor. Era mais visado pela ditadura desde as primeiras horas do golpe de 1964, quando seu pai, detentor de alta patente na Aeronáutica, insurgiu-se contra o regime. Nas reuniões, Vinicius brilhava. Ainda jovem, já dominava o pensamento marxista. Culto, sensível, sedutor, exercia legítima liderança no Comitê Universitário. Guardo difusa memória daquele nosso primeiro encontro ao anoitecer. O papo rolou solto e eu, só na escuta, toda prosa com o tête à tête com os dirigentes comunistas. Embora fazendo o tipo mocinha encantada com os seus heróis, naquele encontro comecei a entender que o ideal de liberdade socialista não cabia na ortodoxia dos manuais de um marxismo mal interpretado. A conversa que tivemos me volta à lembrança em sons de um allegro. E me sinto livre para preencher os vazios da memória com certa dose de invenção, só para dar movimento ao relato, sem desfigurar os fatos.
A certa altura da conversa, o assunto virou para as bandas da música. Acabara de acontecer o embate entre Sabiá (Tom Jobim e Chico Buarque) e “Para Não Dizer Que Não Falei de Flores” (Geraldo Vandré) no Festival Internacional da Canção daquele ano de 1968. “Sabiá” levou o troféu do primeiro lugar. Mas a canção do Vandré foi consagrada pelo público em gesto de protesto. Pode ser que, enquanto eles debatiam o resultado, eu já cantarolasse uma das duas canções. Provavelmente “Sabiá”, musicalmente mais rica, mais lírica, mais ao meu estilo. Lembro que também puxei o refrão do Vandré: “vem, vamos embora que esperar não é saber/quem sabe faz a hora não espera acontecer...” Os camaradas gostaram e pediram bis.
Como escreveu Stefan Zweig em “Maria Antonieta – retrato de uma mulher comum”, compreende-se o presente através do passado. Nada mais certo. Assim, ao relembrar meu tempo de vinculação ao PCB, revitalizo minha percepção da política e tento entender o que está acontecendo agora. É certo que minha visão política tem origem naquela singular experiência do Comitê Universitário. Os meus princípios de análise  – por serem princípios - bem se aplicam ao presente. Conquanto não mais atue politicamente e o que eu penso, portanto, não tem a menor importância, ainda me guio pela ideia da democracia como um valor universal, algo que nos possa levar a um regime socialista desatrelado da sociedade de consumo, do império bancário, um regime que saiba conciliar liberdades individuais e interesses coletivos - algo que o mundo talvez ainda não conheça e que, de todo modo, não me será dado a conhecer.    
A expressão “o que está acontecendo agora” foi o título de um documento de análise sobre a situação nacional apresentado por Vinicius numa das Conferências do Comitê Universitário de que participei. No “aparelho” havia uma ampla sala de jantar onde os trabalhos se concentravam - cortinas cerradas por todo o tempo por medida de segurança. A mesa fora encostada à parede para acomodar melhor a turma. Vinicius puxou uma cadeira para o centro da sala, posicionando-se exatamente sob o foco de luz. Espalhamo-nos à sua volta, guardando certa distância. Ele assim criou um ambiente teatral para sua performance política. Até então, eu não sabia o quanto Vinicius amava a música de Verdi e que tinha o sonho de participar como figurante de uma encenação de ópera. A leitura do documento durou quase o tempo de execução de uma ópera completa, sem que o público desse sinal de cansaço. Feitiços do camarada Vinicius. Esse documento teve o mesmo fim de outros tantos, pois tudo o que se escrevia naquela época, inclusive, o jornal oficial do PCB – A Voz Operária - devia ser destruído depois de lido. Queimar papéis era tarefa frequente na vida dos militantes. Nossa história existe, então, apenas nas memórias ainda não apagadas pelo bug dos neurônios dos que viveram aquela experiência. Fotos como aquela dos presos políticos trocados pelo embaixador americano, nem pensar. Até hoje, não fomos notícia. O que não quer dizer que nossa atuação silenciosa não tenho contribuído à luta contra a ditadura. 
E, assim, a partir daquela naquela noite, fomos “caminhando e cantando e seguindo a canção”, para, um dia, fazer “a hora acontecer”. Léo diz que fomos derrotados. Não sei se concordo. A concepção de derrota, ao meu ver, relaciona-se com objetivo de chegar ao poder. De fato não chegamos e jamais chegaríamos. Dou-me por vitoriosa com o resultado de nosso trabalho: ter enfrentado o recrudescimento da ditadura (AI-5) com uma política de resistência fundada em ações que, de fato, permitiram a reaproximação dos estudantes, por exemplo, pelo restabelecimento da representação de turma, pela reativação de associações esportivas, com a montagem de shows, semanas de debates, etc. Não havia antes e, creio, ainda não em nossa complexa sociedade condições objetivas para o êxito da democracia avançada por nós pensada.
Derrotados ou vitoriosos - depende do enfoque - o importante é ter a certeza da amizade que entre alguns de nós se fortaleceu ao longo dos anos; vínculos que, democraticamente, sobrevivem às divergências que eventualmente nos colocam em pólos opostos. Vinicius que depois foi Samuel e acabou recuperando sua original identidade faleceu em 2012. Valoroso intelectual, pai, avô, amigo, meu parceiro de ópera e de tantas aventuras; emérito professor, deixou seu nome inscrito na história da UFRJ e na luta pela democracia neste país. Transformo, então, a saudade em convivência e, sempre que posso, ao cair da tarde, mando meu pensamento ao encontro de Vinicius. Por mais soberba e poderosa que seja, a morte não nos priva de tudo...   
   

    

Tuesday, November 05, 2013

Nos tempos do PCB - capítulo V

Eu era pequena e, intuitivamente, já acreditava na música como elemento propulsor de nosso (bom) senso de humanidade - uma espécie de purificador de sentimentos, uma força agregadora que pode nos levar às melhores ações sociais transformadoras. Tive em família uma boa formação musical. “Brincar de ópera” era programa certo no amplo quintal de nossa casa na rua Pinto Teles, em Jacarepaguá. As encenações de Madame Butterfly eram frequentes. Como mais velha, eu dirigia a montagem, designando os papéis dos meus irmãos, Armando e Henrique, atribuindo-me o papel título, é claro! Não me recordo bem o que fazíamos nem o que cantávamos. Mas tínhamos a partitura da Butterfly mais ou menos sabida e o nosso jardim era um bom cenário para o primeiro ato. Como ocorre entre crianças, o tempo de combinação do que cada um devia fazer era maior do que a brincadeira em si. Mas as cenas da entrada de Madame Butterfly e a do casamento eram o ponto alto de nossa performance pueril.
        
Na levada da política traçada pelo Comitê Universitário do PCP no início dos anos 70, tivemos a música como aliada. Era preciso espantar os fantasmas do AI-5. Uma companheira de codinome Tania tinha acesso ao empresário dos grandes nomes que haviam despontado nos festivais da canção dos anos 60. Assim, nos aproximamos de artistas como Milton Nascimento, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, MPB4 e outros cujos nomes já não recordo. Estes shows passaram a ter evidente caráter político por inspiração das próprias letras das canções.

Lembro-me bem da noite em que lotamos o Café-Teatro Casa Grande fundado em 1966 por Max Haus, Moysés Ajhaenblat, Moisés Fuks e Sergio Cabral, o pai. Orgulhosa de ter participado da produção, fui às lágrimas quando Milton soltou seu vozeirão: “O que será que me dá/ que me bole por dentro, será que me dá...”        http://letras.mus.br/chico-buarque/45156/   

        Das experiências com pequenos shows partimos para algo mais arrojado: a montagem do Showzão que veio a ocorrer no primeiro semestre de 1970. Os caminhos se abriam à medida em que os artistas compreendiam a nossa política. Não era à toa que atuavam gratuitamente. E lá iam com seus instrumentos e toda aquela parafernália de palco, emprestando sua força de trabalho à causa das liberdades. Elis Regina, grávida de João Marcelo, fazia show no Canecão que nos foi cedido para o evento a se realizar numa segunda-feira, o dia livre dos artistas. E tivemos casa lotada numa segunda-feira! Era prova de que a massa estudantil, silenciosa e aparentemente desinteressada da política, abafava no peito o desconforto com a ditadura. E o grito contido explodiu quando Leila Diniz e Ziraldo, os apresentadores, pisaram o palco que logo seria tomado pelos acordes das mais significativas canções da época. E lá estavam Chico, Elton, Paulinho, MPB4, nossos mais fiéis parceiros na frente musical-estudantil contra a ditadura. Até Elis Regina nos brindou com um trecho de seu show. 
   
         Em 1971 encerramos o ano com outro grande show. Lotamos a quadra do Botafogo. Ziraldo pintou um imenso painel que dava o sentido político do evento. Que fim terá levado esta obra? A mim tocou falar ao final. E lá fui cheia de garra. Quem me viu no palco a conclamar os estudantes para lutar pela democracia não poderia supor que, exatamente naquela semana, eu vivia os dramas de minha separação, provavelmente coisa menor se comparada à dor maior de toda a cidade, de todo o país, que era viver sem liberdade de expressão.

        Mais tarde, em 1976, já vinculada ao movimento feminista, com minha experiência no ramo, juntei-me à Mariska Ribeiro e outras companheiras para montar o show “Amelia Já Era?!” Era preciso conclamar as mulheres para refletir sobre sua subalterna condição social. No movimento feminista nossas gestões eram coletivas, não havia estrutura hierárquica, mas não posso deixar de conferir à Mariska a posição de chefe desta empreitada musical. Profunda conhecedora da música popular brasileira e dotada da mais sensível consciência feminista que eu pudesse ter encontrado, Mariska foi determinante para a realização do projeto. De quebra, ficamos amigas para sempre. Mariska também gostava de ópera e, assim, a festa de nossa longa amizade foi completa, só interrompida com tristeza por sua morte em 2004. Este show realizou-se no Teatro João Caetano, antigo Teatro São Pedro – o que abrigava as temporadas líricas antes da inauguração do Municipal em 1909. Caetano disse que ia e, na hora, não apareceu. Em compensação, Jorge Goulart e Nora Ney abriram o evento, empolgando a platéia. Paulinho da Viola fechou a noite com “Coisas do Mundo Minha Nega” (1968), joia de sua criação que também era apresentada nos shows estudantis do Partidão.  

Tudo bem, virei juíza - acho até que estava escrito. Mas, quem sabe, também não teria tido êxito como empreendedora musical?     

Wednesday, October 30, 2013

Nos tempos do PCB - capítulo IV

     A velha guarda do Partido era bamba em clandestinidade. Desde sua fundação, o “clube” (assim chamávamos a organização para disfarçar) contava um breve tempo de vida na legalidade. Sedimentou-se, assim, uma obrigatória cultura de ação às escondidas. Entretanto, a maioria dos militantes das bases universitárias tinha vida legal, comparecia às aulas, cumpria rotinas acadêmicas. Mas mesmo com vida legal, a atuação era clandestina e para tanto, adotávamos, via de regra, a experiência partidária no quesito segurança. E não deixávamos de recriá-la até com certos exageros, algo próprio da nossa faixa etária. O princípio era não saber da vida dos militantes, especialmente da turma da  Direção. Em reuniões e pontos, usávamos nomes de guerra, mesmo entre os que se relacionavam nos campi universitários. Aí, a coisa ficava engraçada, mas fazia sentido – quanto menos informações se tivesse de um companheiro, de uma companheira, menor seria o estrago em caso de prisão. Não se podia garantir a resistência à tortura, assim como não seria justo – e jamais será - condenar quem, nas mãos da repressão,  “entregou” pessoas e esquemas. Cabia agir sempre com cautela e prevenção. 
   
        No setor universitário as medidas de segurança tinham maior relevância na organização das Conferências, nas quais eram debatidas e aprovadas as teses que norteariam a ação futura, bem como eleita a nova Direção. Contava-se com a participação de militantes indicados pelas bases, reunindo-se, assim, um maior número de pessoas, o que desafiava cuidados especiais com os sigilos. Sem contar que devia comparecer à Conferência alguém da direção nacional, quase sempre gente bem mais velha que nós, a despertar sentimento de reverência e curiosidade.

Não lembro de quantas conferências participei. Mas a que talvez tenha ocorrido ao início de 1970 me restou inesquecível. Guardo a lembrança de debates interessantes e muita farra nos intervalos. Nem sei de onde tirávamos aquela esperança, aquela euforia. Talvez por apostar na nossa política de juntar os cacos, reunir os estudantes, nem que fosse em torno de uma associação esportiva. Este foi o eixo da política aprovada na Conferência de 70 que, de fato, rendeu bons frutos.

Como já mencionei, através do companheiro “Gafanhoto”, passamos a frequentar os ensaios da Imperatriz Leopoldinense, na quadra da rua Professor Lacê, que viria naquele ano com o samba-enredo “Oropa, França e Bahia”, tendo como tema a Semana Modernista. Estes encontros em Ramos, ao som da batucada, azeitavam nosso entendimento quanto à necessidade de trabalhar pela abertura democrática. No mais, éramos jovens, gostávamos de andar em bando e de nos divertir. Eis a letra do samba:

1922, OROPA, FRANÇA E BAHIA
Na alvorada de glória
Da literatura brasileira
Quando um marco transformou a velha história
Da arte numa nova fronteira
Dentro da Semana Modernista
Criou a Independência Cultural
Deu plena liberdade ao artista
Desprezando a tradição
Neste verso original
O rei mandou me chamar
Pra casar com sua fia (bis)
O dote que ele me dava
Oropa, França e Bahia
Vibrante, surgiu da lenda um bandeirante
Sob a luz dos pirilampos
Perdidos nos campos
A procura do mar
Sem saber voltar, sem saber voltar
Macunaíma, negro sonso, feiticeiro
Cobra Norato e a rainha Luzia
São personagens do cenário brasileiro
Como a mulata, o café e o vatapá
No Carnaval, o Arlequim e a Colombina
Linda menina, amada pelo Pierrô
Parece o lamento da prece
A voz derradeira da porta-bandeira (bis)
Morrendo de amor
É tempo de amar o que se amou
Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô,
Na alvorada...
O ano de 1970 assim começou na Conferência em tons de promissora alvorada. Em que pesasse a ortodoxia do pensamento comunista por nós herdado, era significativa entre nós a adesão ao conceito de  democracia como um valor universal. Era preciso abrir “nova fronteira” e trazer também o conceito de democracia para dentro da organização partidária, a partir da convicção de que o socialismo deveria ser construído no mais profundo respeito às liberdades democráticas, no esteio do pensamento de Antonio Gramsci, Palmiro Togliatti e Enrico Berlinguer. Se não era de nosso alcance rever a tradicional concepção partidária de viés autoritário pendente para o esquerdismo, apostamos na democracia como estratégia de ação para a universidade, visando recuperar no meio estudantil um sentimento de independência, alguma liberdade, através da arte do diálogo e do entendimento que se fizessem possíveis. E este foi, sem dúvida, o nosso maior acerto.

Nos intervalos das maratonas verbais da Conferência comíamos macarronadas sofríveis que não abalavam o nosso bom humor. E tendo o David Capistrano por perto, alegria era coisa certa. Foi num momento desses da mais livre descontração que nasceu a paródia ao samba que nos unia na quadra da Imperatriz. É claro que participei da redação, aproveitando a vocação que me corria no sangue, sobrinha que sou do Agostinho José Marques Porto (1987-1934), mestre do teatro de revista, gozador, autor de “Ai, Ioiô” em parceria com Henrique Vogeler e Luiz Peixoto e também de divertidas paródias.  Com ajuda da querida Teteca - Maria Tereza Lopes Teixeira -, foi possível resgatar a nossa criação. Eis a letra:  
  
Na Conferência de glória
Da universidade brasileira
Quando o Léo transformou a velha história
Do “clube” numa gafieira
Dentro do “aparelho” requintado
Criou a impressão de bacanal
Deu plena liberdade aos delegados
Começando a intervenção com um grito triunfal

Vitão mandou me chamar
Pra acabar com a fresquete
A direção de setenta vai ser mesmo é de sete.

Vibrante, surgiu Afonso saltitante
Tendo ao lago o Joaquim
Pedindo a palavra sem saber o que falar,
Só querendo agitar, só querendo agitar.
Arlindo Belo entre o velho e o novo
Pede a palavra pra receita aviar
E a Zenir falando alto o tempo todo
 – “Só tem fofoca, o negócio é educar”
(neste trecho, a memória perde duas estrofes anteriores ao refrão otimista):
Setenta, com o Léo na cabeça
O setor vai pra frente
E a nossa política vai avançar
(BIS)
É tempo de esquecer o que passou
Ô,Ô,Ô,Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô.  
        Na Conferência...


Não me sinto autorizada a explicar os pontos incompreensíveis da paródia, tampouco, a revelar quem é quem nessa história. Traçávamos, sim, uma política de massas, mas o Partido, por força da legislação autoritária, ainda permaneceria por mais de uma década na clandestinidade.           

Monday, October 28, 2013

Nos tempos do PCB, capítulo III

     O ano de 1969 chegou com gosto de ressaca. Era preciso enfrentar as razias do AI-5, construir alternativas de sobrevivência política. Meu namoro com Raulino prosperara, tanto que inventei de casar. Casamo-nos. Só no civil, é claro, sem festa, sem a presença dos amigos e mesmo dos familiares. Apenas as testemunhas: o médico José Faure, sócio de meu sogro, e sua mulher, Leonor. Era julho. Usei um vestido de lã fina em tom suave de amarelo, estilo reto, clássico, cintura baixa, saia bem acima dos joelhos. Após o ofício, devíamos colocar as alianças, o que fizemos meio sem jeito, no corredor do cartório da rua Dom Manuel, sem qualquer ritual que sempre ajuda a por as coisas aparentemente em seus lugares. Não é que um das alianças caiu, rolou escada e quase se perdeu?  

O pai de Raulino, S. Miguel, morrera subitamente em abril, vítima de complicações de uma crise de diverticulite. Meu pai viria a morrer neste julho, depois de muito sofrer com o câncer. Seguimos nossa vida de militantes, assumindo a tarefa de driblar a ditadura, sem refletir melhor sobre a precoce perda paterna e sem dar muita bola à nossa vida de casados. Alugamos um apartamento na rua Henri Ford, na Tijuca e, por força das circunstâncias, levamos D. Irene, mãe de Raulino, para morar conosco. Junto com ela veio um amargor em andante lamentoso nutrido pela recusa da perda do marido. Era um luto que parecia se eternizar e, ao jeito dela, se eternizou.

O nosso novo endereço era um lugar perfeito para abrigar reuniões evidentemente clandestinas. Passaram-se alguns meses e, em certa manhã de domingo, esperávamos a Direção. Foi quando um camarada bateu à porta mais cedo:

- Não vai haver reunião. O Samuel caiu. Vocês devem sair daqui o quanto antes.

        Queimara-se o novo aparelho, dissolvia-se o lar dos recém-casados e da viúva inconformada. Esta, tomada pelo medo infundido pelo regime, odiava nosso envolvimento com “os curmuras”, como ela se referia aos comunistas. D. Irene tinha uma graça com as palavras, uns ditos próprios que, muitos anos depois, foram por mim compilados num divertido dicionário apresentado à família em jantar em minha casa pela comemoração dos oitenta anos dela. Intensa em tudo que sentia e fazia, D. Irene me incluiu no rol de seus amores incondicionais desde o primeiro dia em que soube do nosso namoro. A separação do Raulino não nos afastou. Aliás, nosso casamento acabou mais continuamos juntos pela vida afora, unidas nossas novas famílias por vínculos afetivos que sempre se renovam. 

        De fato saímos da rua Henri Ford naquele mesmo dia da prisão do Samuel e jamais voltamos. Meus irmãos se encarregaram da retirada de nossos pertences e da devolução do imóvel ao proprietário. Não me lembro para onde fomos. D. Irene foi viver provisoriamente com uma irmã e o camarada Samuel permaneceu preso por longo tempo. Não recordo de sol, de praia, nem de tardes azuis nos meses seguintes à desarrumação de nossa vida conjugal. Também não sei como, em meio à confusão subitamente instaurada, pude dar conta do ano letivo na universidade, das rotinas do trabalho como professora primária e mais as atividades do Partido. Mas lembro de que, a despeito deste cenário sombrio, nossa política se estruturava, colhendo adesões nas bases, apesar de enfrentar o repúdio da cúpula diretiva do Partido no estado do Rio de Janeiro. De fato, cada vez mais nos afastávamos da ortodoxia dos folhetins marxistas para ir ao encontro da experiência dos comunistas italianos, alentada pelo pensamento de teóricos como Antonio Gramsci.

        Ao começo de 1970, era eleita a nova direção do Comitê Universitário. De certa forma, compensávamos a ausência do camarada Samuel com muita dedicação ao trabalho de juntar os estudantes e reinaugurar a democracia que se fazia possível nas universidades. Aos poucos, nos sentíamos mais fortalecidos e, convenha-se, não há luto - afetivo e cívico - que por muito tempo encubra o viço da juventude. As elevadas temperaturas do verão já aqueciam nossos corações. Na base da medicina havia um camarada conhecido por “gafanhoto” vinculado à Imperatriz Leopoldinense que neste ano se apresentaria com o samba “Oropa, França e Bahia”. Assim, sem maiores pretensões políticas, passamos a frequentar os ensaios, temperando com alegria a seriedade do compromisso com a militância. Este samba entrou em nossa história pela paródia que dele fizemos. Primeiramente, lembremos o samba original - http://letras.mus.br/imperatriz-leopoldinense-rj/473085/ A paródia e o que veio depois a marcar nossa atuação em 1970, fica para o próximo capítulo.

                

Monday, October 14, 2013

Nos tempos do PCB... Capitulo II

Em 1970, no esplendor de minha primeira gravidez, eu concluía a  graduação em Português-Literatura e já integrava o Comitê Universitário do PCB, doravante chamado “Direção”. A edição do AI-5 em 13/12/68 golpeara o movimento estudantil cuja força acumulada nas passeatas já se esvaíra com a queda do Congresso da UNE. O clima policialesco se instalara nos pátios das escolas secundárias e universidades. Havia desconfianças de todo lado. Com o Congresso Nacional fechado, o Estado ditatorial legislava pela via dos decretos-lei, fora os “atos institucionais”. Assim, em 26/02/1969, foi baixado o Decreto-Lei nº 477, que definiu as infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público ou particulares. A regra era clara: considerava-se grave infração disciplinar passível de expulsão (para alunos) e demissão (para docentes e funcionários) a prática dos assim chamados “atos subversivos”, tais como “passeatas, desfiles ou comícios não autorizados”, bem como o uso de “dependência ou recinto” escolar para prática de atividades que viessem a “incitar ou deflagrar” movimento de paralisação ou “contrário à moral ou à ordem pública”. O Decreto-lei 477 feria de morte a representação estudantil, a liberdade de ensino, pesquisa e extensão; atingia os valores maiores da educação como a formação do saber, da cidadania, da cultura e dos mecanismos de troca de experiências através de seminários, congressos, etc. Uma simples conversa de umas três pessoas nos corredores das escolas poderia caracterizar uma atividade subversiva.   

      Por outro lado, parte dos ativistas de 1968 seguiu o caminho da luta armada. Outros propunham a criação de diretórios e centros estudantis “livres”, quer dizer, clandestinos e, por consequencia, distanciados da massa estudantil não organizada. Esta continuava a cumprir suas rotinas escolares mas sem encontrar os espaços de participação experimentados no ano anterior. 

       Assim, enquanto os grupos de esquerda entregavam os estudantes à própria sorte, nós, o “Partidão”, com a Direção do Comitê Universitário eleita eleita ao final de 1969, demos início a uma política de mobilização possível com o objetivo de construir uma ponte de articulações dos estudantes entre si e destes com a sociedade civil, notadamente com as instituições que já se colocavam publicamente contra a ditadura militar, tais como a Ordem dos Advogados do Brasil e a União Brasileira de Mães (dos presos, torturados e mortos pelo regime). Ao nosso ver, era preciso quebrar o silêncio e o medo impostos pelo Estado policial e seus esbirros infiltrados em salas de aula. A nossa política norteava-se, assim, pela compreensão das contradições internas do regime, às vezes muito bem insinuadas nas colunas do Castelinho, no Jornal do Brasil. Era preciso explorar tais contradições e tentar isolar “os malucos”, assim definidos pelo companheiro Léo como os militares da chamada “linha dura”.

        Como já mencionei, começamos a juntar os cacos para avançar. Porém, alguns dos novos integrantes da Direção, como eu, concluíam seus cursos e, logicamente, deveriam se transferir para outros setores de organização de base do PCB. Foi quando cogitou-se de propor a algumas figuras que tentassem permanecer na universidade para melhor implementar a nova perspectiva de mobilização. Algumas de nossas bases mais fortes apresentavam-se de fato desfalcadas, especialmente em razão dos rachas decorrentes das teses aprovadas pelo Sexto Congresso do PCB, ocorrido em 1967. Eu estava presente na reunião que tratou do tema. De repente, alguém me indaga:

- Camarada Lucia, podemos contar com você? Precisamos de quadros na Medicina da UFRJ.
-  Mas eu não sou das ciências, nem das matemáticas, não tenho a menor condição de me preparar para o vestibular de medicina! Vou ter bebê nos próximos dias...
- Compreende-se, camarada.
- Mas... Talvez eu consiga... Quer dizer, quem sabe, eu possa tentar o Direito...
- Nada melhor, companheira! Na base do Caco só resta o Amilcar. Há um trabalho importante a ser feito lá.

O curto diálogo acima reconstituído sugere-me algumas reflexões. Impressiona-me o fato de eu só ter levado em conta o interesse partidário e não ter me consultado, pedido um tempo para pensar e me questionar sobre meu real interesse ou mesmo plano pessoal de passar mais cinco anos em novo curso de graduação, a tal guinada para o Direito. E o que dizer de meu eterno desejo de agradar? Ali pesou muito. Como fui capaz de entregar o meu futuro à decisão de um coletivo partidário, sem mais pensar? 

Minha filha nasceu em dezembro de 1970. E assim, mal saída dos resguardos do parto, lá estava eu a prestar em janeiro o vestibular da Faculdade de Direito da UFRJ. Ocorria naquele ano o último exame com provas discursivas. Fui aprovada sem maior esforço. Juntei-me, então, ao saudoso Amilcar Barroso de Siqueira que já cursava o segundo ano e começamos a remontar a chamada base do Caco. 

      Logo no primeiro semestre, o Diretor da Faculdade, Dr. Miguel Franchini Neto, chamou-me ao seu gabinete e, a portas fechadas, me intimidou: "Eu bem sei quem é você. O que está fazendo aqui?" Num rápido resgate de minha natureza de artista, armei a cara mais ingênua que pudesse apresentar e respondi: - "Estou estudando professor, pretendo seguir carreira jurídica." O homem ficou vermelho de raiva a ponto de explodir. Ou, quem sabe, usando intencionalmente a oratória própria aos juristas, impostou a voz e a carranca para me apavorar, supondo que de lá eu sairia corrida de medo para nunca mais voltar. Ameaçou-me de me enquadrar nas penas do DL nº 477, mas eu não recuei. O Diretor, por sua vez, não repetiu a bravata repressora. Continuei frequentando as aulas, aliás, adorando aquelas proferidas pelo culto, brilhante e gentil professor de Direito Civil, Caio Mario da Silva Pereira. Conheci Leonor Nunes de Paiva, colega de turma do Amilcar e ficamos amigas para sempre. Juntamo-nos a outros colegas e passamos a formar um grupo de resistência. A legendária base do Caco renascia. Pelo menos ali, a política traçada pela Direção rendia bons frutos. E eu, by the way, tornava-me uma advogada. Era só o destino a escrever mais ou menos certo por linhas tortas? Talvez. Algo em comum entre os comunistas e as gestões divinas? Não sei.           

Monday, October 07, 2013

Nos tempos do PCB... Capítulo I

Nasci em 1945 num sítio da zona rural da então capital federal, quando os beligerantes mundiais assinavam o armistício. Venho de berço híbrido. Do lado paterno, uma família tradicional de origem portuguesa com ramificações sólidas na Bahia e no Rio de Janeiro. Do outro, sou Minas Gerais. Sou minha mãe e suas narrativas sobre a fazenda onde nasceu e foi criada pela avó que lá servia. Sou minha mãe e seus mistérios abrigados em fissuras que também são minhas até no significado etimológico de meu nome.

Mas devo saltar no tempo para adequar o relato ao seu objetivo. As histórias da infância, além de mais remotas, são já impressões muito difusas. Fora a minha precoce e promissora carreira na ópera, não teria muito mais a contar. 

Meu pai, jornalista, cronista de turf e de música, era eleitor de Carlos Lacerda. Nas horas antecedentes ao golpe militar, reuniu mulher e filhos à mesa do jantar para alertar quanto ao perigo comunista, sublinhando a iminência do fim ao direito de propriedade privada que nos levaria a ter de compartilhar nossa casa com outra família talvez mais numerosa do que a nossa. Confesso que fiquei mais curiosa do que assustada com o tal do comunismo. Mas, imersa em devaneios de artista domesticada para ser esposa com salário para os alfinetes, não me interessava por política. Em 1965, tornei-me professora primária, mas já acalentando um certo desejo de contestar o destino que me fora traçado por meu pai. Como todas as meninas daquele tempo, eu sonhava, sim, com o casamento mas também me sentia atraída pelos estudos. Até porque, meu pai era um homem de cultura, não sendo compreensível que me imaginasse no fim da linha dos estudos só por ter obtido o diploma do Curso Normal. Contra a vontade dele, ingressei num cursinho situado na rua Haddock Lobo, passei no vestibular e dei início à graduação em Português-Literatura na Universidade Estadual do Estado da Guanabara. Era o ano de 1967. Eu saia para o trabalho quando o Sol despontava trás os montes de Jacarepaguá. Voltava exausta no meio da tarde. Tinha curto tempo para preparar a aula do dia seguinte e correr para a Faculdade. 

Apesar das dificuldades com a dupla jornada de trabalho e estudos, eu ia bem na literatura, incentivada que fui por bons professores como Ivo Barbieri, Dirce Cortes Riedel. O destino pensado por meu pai não condizia exatamente com certa vocação para a coisa pública que a universidade em mim despertava. Nas aulas fervilhavam debates filosóficos relacionados ao campo da análise literária. Eu me via diante de novas descobertas. Era como se voltasse a viver as emoções dos meus tempos de atuação nos palcos da ópera.    

Meu primeiro contato com o PCB deu-se através de Raulino Oliveira, meu namorado. Como operário da Petrobrás ele já era vinculado ao partido e também ingressara na UEG para cursar Filosofia. Entre amores, sessões de cinema de arte, reuniões e calorosas discussões filosóficas, eu ia ampliando minha cidadania.

No primeiro semestre de 1968, para decepção de meus professores, troquei as aulas pela agitação no pátio da faculdade e pelas passeatas nas ruas do Centro. Em seguida, fui eleita por minha turma para concorrer à representação do Instituto de Filosofia Ciências e Letras da UEG na delegação ao Congresso da UNE. Restaram ao fim quatro representantes. E lá fui eu para o Congresso de Ibiúna, sem imaginar que a aventura, tal como concebida pelas organizações de esquerda que dominavam a UNE, fosse resultar em prisão. Meu pai já sofria as agruras do câncer que o mataria no ano seguinte. Meus irmãos contam que a toda hora ele perguntava por mim. “A Comba fugiu de casa? E o Raulino, por onde anda? Vocês estão obrigados a me dizer a verdade.”
Se cheguei a São Paulo como a menina tímida que ainda era (vai ver que um pouco ainda sou), no Presídio Tiradentes, fichada, trancada em cela de presos comuns adaptada para receber estudantes, tornei-me mulher. Lá completei meus 23 anos. Passados uns trinta dias, já no Rio, fui solta, mas respondi a processo. Muitos anos depois, fui em busca de certidões das auditorias militares por ter sido aprovada em primeiro lugar no concurso para a magistratura trabalhista. Por sorte e obra dos advogados que no Rio assistiram os estudantes presos – Modesto da Silveira, Oswaldo Mendonça e Humberto Jansen Machado -, nada mais constava nos registros da Justiça Militar. Pude então tomar posse no Tribunal Regional do Trabalho.


Permaneci vinculada ao PCB de 1968 até 1979, quando pedi “licença-maternidade” e não mais voltei porque minha adesão ao movimento feminista já me inundava de um sentido de autonomia e de livre pensar que viria a se tornar cada vez mais incompatível com as fidelidades partidárias. Até 1975 atuei no Comitê Universitário, quando fiz minha “pós-graduação” em política, formação em cidadania e consciência  democrática. Muito do que hoje sou e penso devo a este rico tempo de convivência com figuras inesquecíveis, algumas das quais até hoje fazem parte de minha vida. Graças ao PCB, terminei o ano de 1975 graduada em direito pela UFRJ. Como assim? Algum comunista teria me obrigado a largar as Letras e me tornar advogada? Não. Nada disso. Concluí regularmente meu curso na UEG. O Direito foi escolha minha. Mas será que inteiramente minha? Aguardem o próximo capítulo.    

Monday, July 15, 2013

EM DEFESA DO BOM JUIZ, QUER DIZER, DA DEMOCRACIA

Circula no facebook “petição para a extinção dos privilégios abusivos dos juízes brasileiros”. Minha adesão foi solicitada, mas não devo assinar, pois  não concordo com a totalidade dos pontos listados no pleito, tidos como “privilégios abusivos” da magistratura.  

Não tenho dúvida de que em todas as esferas do Estado há privilégios a serem podados. Mas uma coisa é abolir privilégios, punir condutas lesivas quando provadas as suas práticas por agentes de Estado – Executivo, Legislativo e Judiciário. Outra coisa é atacar a magistratura sem conhecimento da estrutura do Estado e, assim, confundir princípios estruturantes da Justiça com privilégios – uma investida que, lamentavelmente, resulta em ataque ao Estado Democrático de Direito que tem no juiz o seu pilar essencial.  

A maioria dos juízes age com responsabilidade, apesar das precárias condições de trabalho. Uma coisa são os abusos praticados em Tribunais superiores, embora também não se possa generalizar e colocar todos os desembargadores na mesma legião dos que ambicionam privilégios. Outra coisa são as Varas onde atuam os magistrados de primeiro grau em contato direto com o povo, ouvindo o povo, compondo conflitos de toda ordem em garantia da paz social. A Justiça de primeiro grau é o coração do Poder Judiciário. E não é justo que os juízes de primeiro grau – a maioria dos juízes brasileiros, os que dão o máximo de si em prejuízo da saúde e, não raro, da própria vida – sejam colocados no mesmo saco dos malfeitores encontráveis nas três esferas dos poderes de Estado.

Não acho justo sustar o pagamento dos atrasados relativos ao auxílio-alimentação, tanto a juízes como a servidores, se tal direito teve a sua legalidade acolhida e declarada. A propósito,  esclareça-se que o exercício da magistratura confere aos juízes responsabilidades maiores em relação aos servidores. Responsabilidades que demandam a estruturação da carreira com base nas garantias constitucionais da imparcialidade, da vitaliciedade e da inamovibilidade. Esta última, de caráter mais prático a permitir comentário num artigo breve, protege o exercício da Justiça dos interesses políticos e econômicos que pretendam afastar o juiz de sua jurisdição para impedi-lo de julgar determinado caso.

Quanto às férias de 60 dias, se isto outrora nasceu como um privilégio – admita-se - hoje opera em favor dos que precisam da Justiça e não devem ser penalizados pelas negligências do Legislativo e do Executivo, quanto à necessidade de ampliação da rede de serviços judiciários. Na verdade, a maioria dos magistrados hoje utiliza metade ou mais dos seus 60 dias de férias para colocar o trabalho em dia, quer dizer, atender ao estupendo volume da demanda. Em comparação com outros países, o Brasil guarda uma das piores proporções entre o número de magistrados e o número da população. Desde a Constituição de 1988, vem se elevando o número de ações na Justiça, sem que se tenha ampliado na mesma proporção o número de Varas e Tribunais. A verdade é que as deficiências do aparelho judiciário quase sempre são amenizadas pela consciência do juiz. Imagine-se o que aconteceria hoje se a maioria dos juízes passasse a trabalhar no limite de uma jornada de 44 horas semanais e com férias de 30 dias? Em poucos meses, ocorreria um brutal engarrafamento de processos e sequer seria possível circular no interior das Varas. Por sorte, a maioria age e trabalha em nome do compromisso firmado com o Estado, com a sociedade. O juiz que vai ficando até mais tarde, ao contrário dos servidores judiciários que desobrigam-se das tarefas ao término da jornada legal. O juiz que leva trabalho para casa, elastecendo em muito a sua jornada, por pura questão de zelo e consciência. O juiz que dirige longas sessões de audiências  e depois vai examinar os processos e proferir despachos. Falo da memória de meu tempo de atividade como juíza do trabalho de primeiro grau, como assim me aposentei. Falo em nome da maioria que recusa o regime dos privilégios.   

Muitos se queixam do valor da remuneração dos juízes. Mas talvez não saibam que a Constituição proíbe ao juiz de exercer quaisquer outras atividades remuneradas, salvo o ensino jurídico e, mesmo assim, vedada a ocupação em cargo de direção nas universidades. Para os cargos do Executivo e do Legislativo, tal exigência não existe, tanto é que muitos agentes do Executivo e do Legislativo, estes sim, por terem trânsito livre no mundo dos negócios, acabam por adotar como princípio a promiscuidade entre o público e o privado, em benefício do próprio enriquecimento às custas do cargo ou mandato exercido.  


A minoria que hoje impropera contra a remuneração e demais direitos da magistratura talvez não esteja atenta ao fato de que, no mercado de trabalho em geral, os cargos executivos de alta responsabilidade (que de longe se comparam ao do juiz) costumam ser remunerados com valores superiores. Alguém se interessará por se preparar e ingressar na magistratura, com toda a exigência que a carreira impõe, a troco de remuneração irrisória? A pergunta que ainda cabe é a seguinte: a quem interessa juízes mal pagos e sem as garantias constitucionais que ainda delineiam o ofício como carreira de Estado? Alimentar uma pregação generalizada contra “os juízes brasileiros”, creio, equivale a favorecer, indiretamente, pretensões que de fato existem de tirar a Justiça do âmbito do Estado, talvez privatizá-la, como se vem fazendo com a Educação e a Saúde, relegando-a, enfim, a uma atividade qualquer do mercado de trabalho. Quem hoje, por ingenuidade ou falta de informação, agride a magistratura está a dar vários tiros nos próprios pés, pois, sem uma Justiça independente, imparcial e amparada em princípios tais como os vigentes na Constituição não haverá democracia.