Tuesday, September 19, 2006

Feminismo e maternidade


O texto seguinte foi escrito em 28.02.1991. É do tempo da Lettera, máquina leve e elétrica usada para datilografar. Revisei-o, tentando preservar o sentido e a redação original. Aí vai.

Fui mãe pela primeira vez em 1970.
Para certas mulheres de minha geração casar e ter filhos não era mais o único caminho de vida a seguir. Para nós, graduadas nas vivências da vanguarda do ME que sacudiu o Rio em 1968, não mais se desenhava um futuro do tipo “chinelo na mão e avental todo sujo de ovo” (trecho da música “Dia das Mães”, de David Nasser e Herivelto Martins). Os ecos da contracultura e do feminismo chegavam ao Brasil, convidando-nos a ultrapassar nossos limites. Fomos tomadas pela reflexão sobre os conflitos de nossa época. Não dava para continuar padecendo em silêncio para ser reconhecida como mulher de verdade. Nossa geração, aliás, veio para questionar verdades, fazer revoluções. Era preciso repensar a família e o falso paraíso que chamavam lar.
Fui mãe pela segunda vez em 1973.
A essa altura, reinava uma grande confusão. Rejeitáramos o modelo tradicional de mulher e de mãe. O feminismo acontecera na Europa e nos Estados Unidos, onde mulheres em grandes manifestações de rua reivindicavam a legalização do aborto. Era a hora de dizer não à dominação patriarcal. Queríamos mulheres ocupando espaços na vida pública. No Rio e em São Paulo, em pouco tempo, estaríamos mobilizadas. A escritora Carmen da Silva já nos provocava (e fazia tempo!) com informações e debates na revista Claudia, repensando a arte de ser mulher. Apesar dos reboliços em nossas cabeças, continuávamos a celebrar rituais de casamento, a parir, reproduzindo na dinâmica da vida atitudes os valores do velho modelo. Era difícil viver confrontando o tempo todo e manter no plano privado o tom dos nossos questionamentos públicos sobre a condição da mulher. Queríamos acabar com a família. Mas, nos casávamos e coninuávamos a constituir família com direito a marido, crianças, avós e bichos de estimação. De seu lugar tradicional, os maridos não padeciam de inquietações. Não incluíam em suas agendas o cotidiano do lar. Sobrara então para nós o trânsito aflito por estes mundos antagônicos que mal cabiam nas 24 horas do nosso dia. Em 1975, a ONU proclamou o Ano Internacional da Mulher. Era preciso agir. Criamos o Centro da Mulher Brasileira. E à nossa já tumultuada rotina somou-se a mais nova e importante tarefa: o movimento de mulheres. O CMB, situado no Castelo, era o era o palco de envolventes debates que consumiam as nossas tardes de sábado.
Fui mãe pela terceira vez em 1978.
Analisamos nossas leis e percebemos que, feitas pelos homens, em seu conjunto, serviam à manutenção da ordem patriarcal. Construímos a teoria da igualdade de direitos e elaboramos propostas de projetos de lei que levamos ao Parlamento em Brasília. Nosso discurso ganhou auditórios, avenidas e mídia. Denunciamos a exploração da mulher trabalhadora, a dupla jornada, a chefia dos homens na sociedade conjugal. Reivindicamos a criação de equipamentos coletivos - creches, restaurantes e lavanderia populares – que permitissem às mulheres assumir os compromissos da vida pública. Organizamos grupos de reflexão, encontros e congressos, como faziam as feministas no resto do mundo.
Nos primeiros anos do movimento, alguns temas permaneciam intocáveis. Éramos em maioria mulheres de esquerda vinculadas a partidos políticos ainda clandestinos. Até então, não nos assumíamos como feministas. Não falávamos abertamente em aborto para não romper a frente ampla tecida nos tempos da ditadura militar, ainda de prontidão. Não podíamos ser o pivô do rompimento da antiga aliança da esquerda com a Igreja.
Debatíamos exaustivamente. Brigávamos, disputávamos poder. Quanta energia consumida em indagações do tipo homens devem ou não participar das nossas reuniões! Íamos para as discussões, duras, amarradas, com os sentimentos travados e o corpo fechado, tal como vão os homens, especialmente para as suas atividades públicas. Havia o medo de sermos confundidas com homossexuais. Nas reuniões do CMB, era freqüente o conflito entre nós, as mulheres da esquerda, e as feministas descompromissadas com deliberações partidárias. Branca Moreira Alves, Carmen da Silva, Rose Marie Muraro, Danda Prado, Ligia Rodrigues, Jacqueline Pitanguy, dentre outras, eram as feministas e estavam, sem dúvida, à nossa frente em termos de formulação sobre a condição da mulher. A verdade é que nós, as de esquerda, nos sentíamos inseguras, enquanto as feministas nos desfiavam a romper com as exigências partidárias e com o comportamento homem de esquerda.
O fogo daquela paixão nos consumia e tínhamos já alguma consciência de que só o fato de estar ali reunidas com mulheres já significava um certo rompimento às submissões partidárias. Nossa missão era libertar as mulheres. E a tarefa incluía libertar a nós mesmas, construir novas formas de organização não plasmadas na hierarquia machista. O CMB não poderia ter uma Diretoria e sim um colegiado. Era preciso aprender a ser feminista em atitudes, palavras e gestos. “Oh! Mãe me explica me ensina/me diz o que é feminina?”
O movimento em sua intensa dinâmica foi nos fazendo a cabeça. E já no limiar da década de 80 agíamos sem dar maior importância à aprovação de nossas respectivas organizações partidárias.
Em fins de 1979, grávida sem saber, fui ao Jornal da Globo para pedir a descriminalização do aborto em nome do movimento feminista do Rio de Janeiro. A maternidade entrara em pauta por sua dimensão mais transgressora e conflitante: quando é para dizer não. “A maternidade não pode ser uma fatalidade biológica”, declarou Branca Moreira Alves que comigo participou da entrevista. O tema aborto nos levou a formular os direitos da concepção, tendo em foco o direito de escolha da mulher quanto a ter ou não filhos.
Fui mãe pela quarta vez em 1980.
Era o momento da mais intensa militância feminista no Rio de Janeiro. E como foi difícil dar o peito em paz ao meu filho! O telefone não parava de tocar. Eram as amigas a me convocar para reuniões, passeatas, etc. Eram conversas intermináveis sobre táticas, novas propostas e também sobre as fofocas dos bastidores.
A cesariana já havia substituído o poder natural de parir, instituindo-se como procedimento de rotina. O parto e o aleitamento materno jamais haviam sido objeto de nossos debates. Um marketing bem sucedido nos convencera de que o leite em pó, este sim, seria o melhor alimento para nossos bebês, com a vantagem de nos libertar para as atividades profissionais e tudo mais que nos foi dado a protagonizar naqueles tempos modernos. Não víamos o aleitamento como um problema específico de mulher (assim denominávamos os temas que se diferenciavam das lutas gerais da esquerda).
Em 1983, junto com a ginecologista Tânia Costa Rego, promovi o encontro de Carmen da Silva com as Amigas do Peito, grupo récem-criado e destinado a incentivo do aleitamento natural. Autorizadas pela receptividade de Carmen aos propósitos do movimento, as Amigas do Peito passaram a ocupar a comissão de frente de nossas passeatas do 8 de março com seus bebês. O fato causou revolta em algumas feministas que não viam aquele trabalho com bons olhos. Achavam que a presença delas na passeata roubava a cena e contrariava nossos objetivos feministas. Achavam o movimento das Amigas um retrocesso, uma forma de levar as mulheres de volta para o confinamento doméstico. É bem verdade que as Amigas do Peito emolduravam as nossas passeatas mas jamais participaram do Fórum Feminista do Rio de Janeiro, coletivo de onde saia tudo o que acontecia no movimento.
Hoje em dia já penso na possibilidade de ser avó.
Já se fala em pós-feminismo. O movimento traz no corpo essa marca de criar, refletir e transgredir suas próprias verdades, antes mesmo que sejam compreendidas.
Embora afastada da militância, continuo apaixonada pela causa das mulheres, por suas histórias, suas contradições, seus poderes e magias. Não me sinto pós. Mas sei que o feminismo já não é mais o mesmo. Mudou a linguagem e cresce a tendência a uma prática mais abrangente, pensando-se a mulher como um ser da natureza a inspirar preocupações ecológicas. Talvez seja agora primordial a idéia de salvar o planeta.
Não sei se superei minhas atitudes inspiradas no modo masculino. Mas, sinto-me mais harmonizada e quero integrar minhas ricas vivências, ainda que em andamento bem mais lento. Participo de encenações teatrais levadas às ruas no Dia Internacional da Mulher e sinto o maior prazer em encontrar minhas companheiras de aventuras feministas. Permito-me chegar mais cedo em casa. Experimento cozinhar com algum prazer, buscando novas receitas e é cada vez mais gostoso dar o peito às histórias dos meus filhos, compartilhando suas inquietações, temores e alegrias.