Thursday, December 08, 2011

NOVOS VÍNCULOS FAMILIARES: UM IDEAL DE FRATERNIDADE


Recentemente, o IBGE divulgou dados do estudo “Estatísticas do Registro Civil 2010” que apontam para o aumento do número de divórcios no Brasil. Segundo o estudo, o tempo de duração dos casamentos vem se encurtando e a dissolução pelo divórcio facilita a formação de novas uniões entre pessoas jovens, surgindo destas uniões novas proles. Os dados, sem dúvida, falam de uma mobilidade da instituição familiar. Parece-me, então, importante saber como estão se comportando as pessoas envolvidas nestas novas constelações familiares surgidas a partir do corajoso e próspero gesto de enfrentamento da realidade em que o casamento perde a sua motivação de continuidade, não havendo outro caminho senão a separação.
É muito bom saber que a sociedade se movimenta no sentido de romper com as amarras à secular hipocrisia dos casamentos e das famílias. Homens e mulheres têm o sagrado direito de buscar a felicidade. No século XXI, o casamento não pode ser mais uma prisão. Se para os homens nunca foi, para as mulheres, a obrigação de permanecer casada por não haver alternativa de inserção social, ainda hoje, é causa de frustração e sofrimento.  Mas será que essa mobilidade familiar apontada nos estudos também opera efeito na seara ideológica da família, no modo de encarar as mudanças retratadas nos números?
Há precedentes de práticas não padronizadas no enfrentamento da realidade do casa/separa/casa de novo. A instituição da “guarda compartilhada” – a responsabilização conjunta concernente ao poder familiar dos filhos comuns (arts. 1.583/1584, do Código Civil de 2002) - pode já estar funcionando como o necessário puxão de orelha nos ex-cônjuges com tendências belicosas. O hábito de conversar sobre a criação e a educação dos filhos comuns pode criar uma predisposição para a amizade. Nada mais coerente para os que já tenham experimentado um vínculo de afeto. Sim, é preciso superar os conflitos do momento da separação, perdoar, fazer as pazes, celebrar a amizade – abraçar um projeto de fraternidade entre ex-cônjuges. Por que não? Parece simples, mas não é.
No plano das relações pessoais e familiares, a verdadeira vocação das pessoas para o novo é posta à prova e tende a sair perdendo. O apego aos padrões é sempre mais forte. O mais provável é que os protagonistas do novo desenho das famílias permaneçam atrelados às tradições e se sintam pouco à vontade nas suas novas peles, sem saber como lidar com remodelação das novas relações de família. O pai de sangue poderá olhar de banda para a relação do filho com o “pai” por convivência com a ex-mulher. E por aí vão as muitas formas de estranhamento e recusa às situações que se colocam nos novos alinhamentos familiares. A pressão das novas parceiras, dos novos parceiros e dos respectivos familiares, infelizmente, pode ser forte no sentido de delimitar distâncias e manter as relações entre as respectivas famílias nos limites da frieza protocolar. Nada de dar asas ao elo da amizade, transformando em tribos as novas constelações familiares. Cada macaco no seu galho. Nada de intimidades. Com tal atitude de abandono ao cultivo da fraternidade, quem perde é a sociedade.
As crianças, em sua espontaneidade, dão de dez nos adultos, como se diz, no modo de encarar as mudanças de contexto em suas famílias. Jamais esqueço a cena em que minha neta, por volta dos seus seis anos, apresentou-me uma pequena, dizendo: “minha irmã”, com as mãzinhas estendidas e uma carinha de “olha o que me aconteceu!” Tratava-se da filha da nova companheira do pai dela.
Falo de situações de uma nova arrumação familiar que vivi na pele. Namorei, casei, tive uma filha. Um ano após, o casal estava separado. Não passou muito tempo, novos casais formamos. Outros filhos nasceram das novas uniões. Os filhos de meu ex-marido diziam-se primos dos meus filhos da segunda união. Primos não são. Nem meio irmãos, conquanto tenham uma irmã em comum. Mas são amigos desde as respectivas fraldas. E aí chego ao ponto interessante da história. Essa fraternidade entre as crianças das novas famílias paralelamente alinhadas, como as que criamos, só acontece quando há um sentimento de fraternidade entre os que se separam, uma fraternidade que transborde em direção às novas parcerias afetivas estabelecidas e, de modo mais amplo, em direção aos respectivos familiares.
Há quem possa invalidar tal “modernidade” e até encontrar seus pontos negativos. Admito, pois não acredito em modelos perfeitos em termos de relacionamentos afetivos e familiares. Mas sou muito fã das situações de entendimento e da construção de atalhos de liberdade em toda e qualquer relação afetiva. A formação de uma grande tribo a partir do alinhamento circular das novas constelações familiares que vão se formando em razão da mobilidade das uniões conjugais, de fato ou de direito, parece-me bem mais saudável, mais verdadeira expressão da condição humana que é grupal, é social por excelência; mais identificada com os objetivos de uma sociedade fraterna e livre. Pena é que nem todos, principalmente os mais jovens, assim pensem.         

Tuesday, November 01, 2011

Com carinho, para lembrar Dona Irene


A morte de D. Irene (1919-2011), avó paterna de Fernanda, minha primeira filha, pede que eu escreva como testemunha do amor mais intenso e recíproco que eu possa ter conhecido. 

Tudo veio a calhar como uma história bem concebida. Em 1970, a notícia da minha gravidez foi um sinal de vida a reduzir o peso de um luto intocável, tal como ela o vivia, pela perda do marido um ano antes. Como era imensa a minha responsabilidade!  Mas, tudo correu bem, desde o início. Naquele tempo, não se falava ainda em saber o sexo de bebês por ultrassonografia. No caso, nem foi preciso. A avó declarou sua certeza e, assim, passamos a nos preparar para a chegada da nossa menina. Sim, digo “nossa” porque não me foi difícil dividir a delícia da maternidade com ela, a avó. Neste ponto fui generosa. Meu olhar para as demandas coletivas talvez tenha facilitado a socialização do meu bebê.

Por outro lado, naquele tempo, não havia a imposição do “politicamente correto” no que diz respeito a ser mãe. Pais ainda não freqüentavam salas de parto. Pediatras ainda não se impunham sobre o nosso instinto materno. Dei liberdade à participação da avó, algo que, aliás, aconteceria, a despeito de minha vontade. Mas, pelo pouco que me conheço, jamais problematizaria a nossa convivência por este aspecto. Se ela dizia que a temperatura da água do banho do bebê estava errada, eu tentava “consertar”. Se o vestido por ela confeccionado não era de meu inteiro agrado, sem problemas, eu deixava que a menina o usasse.

Por sorte, intuitivamente, eu entendia a força maior do amor delas. Um amor tão verdadeiro, tão do bem, como se diz, que jamais me despertou ciúmes e jamais significou que o meu vínculo de amor com minha filha pudesse se abalar. A avó botou letra nova no “Nana, neném”: “Ela é de Vó, elazinha é de Vó/ Ela é de Vó, elazinha é de Vódeia...”. Jamais senti a canção como declaração de propriedade. Recebi-a com carinho e a cantei para embalar meus netos, minhas netas. O Vódeia pegou como nova identidade de D. Irene.     

No jeito intenso dela de amar, passou a ser também avó dos meus filhos do segundo casamento. Em verdade, passamos a formar uma nova família ou - melhor - uma família assentada em novos fundamentos. Nada de caso pensado. Apenas nos permitimos maior indulgência com as voltas que o mundo dá. Nada de teoria. Mas é inegável que o instinto de liberdade saiu vencedor na história de nossa família. Uma história do triunfo dos afetos sobre as instituições. Uma história feita de encomenda para acolher o amor singelo entre a avó e a neta, vínculo que transcende os limites físicos da vida e da morte. Exemplo de entrega, de tolerância. Como me faz bem saber que dei meu corpo à gestação deste evento amoroso pleno de eternidade! Obrigada, vida. Obrigada, Raulino. Obrigada, Vó. Obrigada, Nanda, milha filha.              

Sunday, October 09, 2011

O MAR DE CLARICE

Tarde dessas, fui com um dos meus netos dar uma olhada na Livraria da Travessa. Bisbilhotávamos as estantes destinadas aos pequenos. Encontrei ali um livro fininho na parte dedicada à turma teen. Era obra de Clarice Lispector indicada como "crônicas para jovens", sob o título "do rio de janeiro e seus personagens" (Ed. Rocco, 2011). Dúvidas sobre a utilização das letras minúsculas no título da obra e também nos títulos das crônicas - grafadas originalmente pela autora ou recurso da edição?

Assim como a obra infantil de Clarice, as crônicas para jovens são ótimas, principalmente porque falam aos jovens de todas as idades. Os personagens descritos são enfocados daquele jeito ímpar de Clarice se colocar nas percepções do real. 

São crônicas curtinhas em laudas, mas imensas em literatura.  

Segue "o mar de manhã"

"O mar. Tenho deixado de ir ao mar por indolência. E também por impaciência com o ritual necessário: barraca, areia colada por toda a pele. E mesmo não sei ir ao mar sem molhar os cabelos. E, chagando em casa, tem-se que tirar o sal. 
Mas um dia vou falar do mar de um modo melhor. 
Aliás, acho que vou começar um pouquinho agora. Vou falar do cheiro do mar que às vezes me deixa tonta. 
Tenho uma conhecida que mora na Zona Norte, o que não justifica nunca ter entrado no mar. Fiquei pasma quando me contou. E prometi que ela viria em casa para entrarmos no mar às seis horas da manhã. Por quê? Porque é a hora da grande solidão do mar. Como explicar que o mar é nosso berço materno mas que seu cheiro seja todo masculino; no entanto berço materno? Talvez se trate da fusão perfeita do masculino com o feminino. Às seis horas da manhã as espumas são mais brancas."    

Thursday, August 11, 2011

Da série "Histórias de Irina Terkov"



-I-

Depois de tantos giros por relacionamentos, viagens, compromissos, Irina Terkov escolheu a ilha de Naxos para ser o palco do terceiro ato de sua vida. Da janela de sua sala tinha boa vista do mar Egeu. Contava as ondas, os barcos, divertia-se com a mesmice dos turistas, contemplava o encontro do céu com a terra e pensava em escrever sobre o sentido filosófico da imagem do horizonte. Ocupava-se de reflexões assim tolas, mas sem culpa. Entregava-se à liberdade de pensamento sugerida pelos azuis mediterrâneos. Tempo de sobra havia. A vida corria sem atribulações. Tinha o silêncio como parceiro. Seu destino se confirmava como ela o sonhara: ter por perto o mar. Sua casa situava-se um pouco abaixo do Monte Zas, onde nasceu Zeus, ponto mais alto da ilha. Mesmo assim, de lá era possível ter ampla vista da cidade em seu declive até o mar.
Irina se encantara com a Turquia e agora, residindo na Grécia, era mais fácil revê-la. De lá, há muitos anos, trouxe um pequeno bule de cobre. Daí em diante, nas cidades onde se estabeleceu, o bibelô ficava exposto ao alcance dos olhos. Era um mimo, um presente que se dera numa manhã sem importância, quando caminhava pelo centro de Istambul. Uma referência não do lugar, mas de si mesma, do seu prazer de andar às soltas, no exercício do ofício de jornalista e escritora, quando teve o mundo como seu quintal.
Em certa tarde, quando o sol já se preparava para o recolhimento, viu-se atraída pela cor forte do pequeno bule, iluminado pelas últimas tonalidades crepusculares. À medida que o mar era tomado pelas primeiras sombras da noite, o brilho da peça mais se fazia intenso. E esta visão despertou em Irina a lembrança de que preferia o ocaso à aurora e de que criara uma justificativa talvez pífia para as suas dificuldades com as primeiras luzes do dia. É que não as tinha como distintas das que marcam o poente. Sem contar os tons de cinza que igualam os dias, as horas em tantos lugares e estações do ano. Assim dormia até mais tarde, mas sempre desconfiada de que os preciosos momentos furtados pelo sono traduziam, em verdade, o seu temor de enfrentar os desafios da vida desenhados na alvorada de cada novo dia.
O charmoso bule nunca fora usado. Irina temia que o calor o magoasse. Mas, naquele momento, o avermelhado do cobre exaltado pela luz de fora pedia mais vida à peça. Irina pôs água a ferver e guarneceu o bule do melhor chá que havia na dispensa. Aproveitaria o resto de claridade natural para saborear as novidades: o antigo objeto de estimação, enfim, experimentando sua verdadeira finalidade e a prática do chá a se inaugurar como um momento de olhar para si. Se para Irina não havia aurora, que fosse o entardecer o seu momento de recarregar energias.    
Ainda bem jovem, Irina Terkov compreendeu que seu poder criativo vibrava fora do balaio da maternidade. Dedicou-se integralmente aos estudos e ao trabalho de escrever, aceitando seu jeito de ser mulher tido como incomum. Achava que a palavra solidão passara a ser usada como sinônimo linear do estar só. E o estar só nem sempre se reveste de tal peso exacerbado no som do “ão”. Tome-se como exemplo o seu caso. Ao seu modo, experimentou casamentos, mas sem jamais aprisioná-los no temor de ficar só. Hoje, na ilha, vive só, mas não se sente solitária.  
E assim, na continuidade do chá vespertino, na contemplação dos tons de cobre de dentro e de fora, Irina foi percebendo que andava descuidada da percepção de seus desejos. Era preciso identificá-los. Depois de tudo que vivera, em que parte de seu corpo agora pulsavam?  Em que gaveta da memória teriam se escondido? As respostas não moviam urgências. O tempo diria, um dia.
Certa tarde, após voltar da praça com pães, peixes, flores e frutas, Irina, como de costume, abriu todas as portas e janelas da casa para que a maresia se fizesse incenso e purificasse o ambiente. Iniciou o preparo do chá. Fixou-se na imagem do vapor a se expandir pelo bico do bule e ouviu ao longe o toque da sirene de um navio provavelmente de grande porte. Aconchegou-se em sua poltrona de leituras e adormeceu. Sonhou que viajava ao Marrocos para entrevistar Paul Bowles, autor americano do romance The Sheltering Sky. Na residência de Paul Bowles, Irina era recebida pela cozinheira, uma mulher de olhos expressivos com a ajuda do kajal. Meio sem jeito, a mulher pedia desculpas e informava que não tinha notícias do patrão, desde o dia em que ele lhe dissera por telefone que se dirigia ao set de filmagem em companhia do Sr. Bertolucci.
 - A senhora não ficou sabendo? Aqui se diz que, após a participação no filme, Mr. Paul partiu para o deserto e foi visto por último na cidade de El Ga’a.
A cozinheira servia-lhe o chá e lhe sugeria que descansasse um pouco antes de seguir o caminho de volta. Pedia licença e se retirava. Irina contemplava a decoração simples da sala de Paul. Fixava os olhos no vapor perfumado exalado pelo bico do bule. E, seguindo-se o sonho, via as tomadas finais da bela obra de Bertolucci. Com clareza incomum aos sonhos, escuta o pequeno trecho do livro, na voz do próprio Paul Bowles, como aparece no filme:       
“A morte está sempre a caminho, mas o fato de você  não saber quando ela vai chegar parece depreciar a finitude da vida. É essa terrível precisão que nós detestamos. Mas, por não sabermos, passamos a pensar na vida como um poço inesgotável. No entanto, as coisas acontecem só um certo número de vezes e um número muito pequeno na verdade. (…) Quantas vezes você vai ver a lua cheia nascer? Talvez vinte. E, no entanto, tudo parece ilimitado.”
Irina desperta com a sensação de ainda estar no sonho. Diante de si o feixe de chaves sobre a mesa, o chá, as maçãs na fruteira, o pôr do sol em tons de cobre, sua opção de vida, seus encontros não raros com os amigos à beira-mar, as lembranças das viagens, seus escritos, seus silêncios, seus desejos ainda que não nomeados, as auroras que ainda pudesse vivenciar e, por fim, a intangível linha do horizonte e o céu, sempre o céu, que lhe inspira e liberta.

Thursday, June 16, 2011

Portugal, minha viagem




" ...tudo é água, tudo é água que corre
De cada vez que nos morre
Nasce um pouco mais além ...”

(“Paixões Diagonais”, música de Miguel Ramos, letra de João Monge
Do CD “Paixões Diagonais” da cantora portuguesa Mísia)


No tempo em que nasci, dizia-se que os bebês eram trazidos pelas cegonhas. Prefiro inventar que comigo tenha sido diferente. Um veleiro dos mais antigos partiu da cidade do Porto com a missão de entregar-me no Rio de Janeiro, onde eu deveria ganhar um corpo e seguir destino. Acho interessante o experimento de chegar-se ao reino da vida pelo caminho das águas, invertendo-se o  mito do barqueiro mobilizado para conduzir as almas ao reino da Morte.
E o deus que me soprou a vida foi rigoroso: conferiu ao comandante do veleiro uma incumbência extravagante: desse ele um jeito de que Portugal, de algum modo, ficasse inscrito em minha identidade. E mais. Que as ondas de minha vida em suas tantas voltas, de algum modo, viessem a ligar-me a Portugal por elos profundos.
Seja por intuição ou pelas velhas ganas desbravadoras, o barqueiro conduziu-me ao berço certo. Meu pai, Henrique, descendia de um Manuel de Souza que chegou à Bahia em 1764. Como já havia um patrício de mesmo nome estabelecido na localidade, ele passou a ser chamado Manuel de Souza Porto, pois da cidade do Porto procedera. Um de seus filhos nasceu no dia de São Marcos e teve em seu nome acrescentado o “Marques”. Toda a prole deste Manuel Marques de Souza Porto já veio sem o “Souza” e sem o “de”. E assim formou-se o sobrenome “Marques Porto” que percorreu gerações, chegando à minha de modo intacto. Quando nasci, era também comum prestigiar parentes, dando aos filhos os nomes deles. Assim, em homenagem a uma das irmãs de meu pai, ganhei o nome da jovem virgem santificada por sua história de bondade, coragem, abnegação e suplícios, coisa própria da Idade Média.

Em minha casa paterna não se ouvia falar em viagens, salvo a do malfadado Titanic, cuja história meu pai adorava contar e a cada vez que a repetia nos parecia mais funestamente fantástica. Vivíamos de modo modesto. Eu jamais seria mandada para estudar no estrangeiro. A Disneyland veio a ser inaugurada em 1955, quando a numerosa prole de meus pais já se constituíra, deixando de haver suporte econômico para proporcionar tal tipo de lazer para miúdos.

Por toda a minha infância e anos adiante, Portugal só me chegava como longínqua referência, seja nas manhãs azuis pelo pregão do tripeiro, seja nas tardes amenas pelas portuguesas de meia idade que batiam ao portão a vender panos bordados na Ilha da Madeira. O tempo ia passando e os “desígnios” de meu destino não se confirmavam. Portugal mantinha-se ligado à minha pessoa só mesmo pela aparente formalidade de nome e sobrenome.

Até que nos meados dos anos 90, passei a fazer parte de um grupo de ouvir música.  A escolha do gênero era livre. Apenas convencionamos que a música deveria ser boa. Não por acaso, havia entre nós consenso quanto ao que se pudesse entender por “boa música”. Pronto. Fazíamos o melhor com o maior prazer. Os encontros eram mensais. Quem estivesse escalado para preparar o programa recebia em sua casa, incumbindo-se também dos comes e bebes. Do grupo fazia parte um casal que deixara Lisboa no rescaldo da Revolução dos Cravos. Pessoas cultas, gentis, que aqui acabaram de criar os filhos de modo perfeitamente integrado ao clima de liberdade vivenciado no Rio.

Nossas tertúlias seguiam ótimas. Em 1997, os amigos portugueses sugeriram que fizéssemos um encontro na Quinta de propriedade deles. Uau! Assim, seguiu-se um roteiro cultural e gastronômico carinhosamente preparado pelos anfitriões. Começamos pela cidade do Porto e terminamos em Lisboa. A meu pedido, Santa Comba Dão foi incluída na rota, um mimo do grupo, já que a aldeia não despertava ao coletivo maior interesse.  

A apresentação musical no campo foi realmente linda, mágica. Não faltou uma Lua Cheia imensa a pratear as folhas das oliveiras do pátio à entrada da casa. Não faltou a reverência da brisa para que ruído algum se opusesse ao livre passeio da música que se alargou em direção aos montes, às videiras até se fundir com o canto vigoroso das águas do Douro. O passeio ao rio, ao cair da tarde, foi  para mim o momento mais marcante de toda a viagem. As altas encostas vistas do leito por onde o pequeno barco seguia exibiam lindos tons de verde. Um silêncio contemplativo nos envolvia, mas algo mais forte me tocava. Seria o barco? Seria a sensação de estar sendo transportada à predição de meu destino? Talvez, intimamente, eu soubesse que esta viagem a Portugal, mais que um giro turístico, era o prólogo de um vínculo mais profundo que em breve se anunciaria.

Não passou muito tempo e meu filho caçula vivia um envolvente caso de amor com uma cantora portuguesa aportada em nossos costados por conta de um casamento fracassado. Passados uns dois anos de namoro, ela resolveu voltar para a sua charmosa Cascais e, por volta dos meados do ano 2000, partiu em silêncio e grávida.  

Não quero me alongar nos detalhes dessa história. Cada vez mais perdem importância, pois uma linda menina veio para recriar antigos laços familiares entre Portugal e Brasil. De um modo definitivamente amoroso, cumpria-se o meu fado.

Olho a vida em retrospectiva e constato que pouco viajei. Não sou das malas, das andanças e muito menos dos tênis. As ondas da vida não me levam ao turismo. Mas não me queixo. Sempre fui dada a “viajar” mesmo sem sair de casa.  Viajar, por exemplo, na leitura de um bom romance. Ah! Encanta-me! Isso eu recomendo. Portugal foi um caso à parte. Outras vezes lá voltei – assuntos de família. Lembro agora, numa dessas viagens, era domingo, fazia um céu azul convidativo ao passeio. O casal dormia, a pequena também, enquanto eu, de bom grado, resolvi lavar a louça acumulada de véspera. Estava em Portugal, estava em casa. Da janela, via ao longe entre as vielas, miúdas e alvas flores. Tomo-as agora como símbolo dessa história, dessa viagem que em verdade é uma só. Um só fluxo de vida em que o porto de partida pode ser, ao mesmo tempo, origem e transcendência.