Thursday, May 18, 2006

Die Valhalla

Nessa noite pode ser que eu leve a coça da mania de estar só. Pela primeira vez pernoitarei só no meu olimpo, cercada de mato por todos os lados. A moça da limpeza já se foi. A partir de agora sou eu e o silêncio de palácio que já amplifica o farfalhar da ramagem convulsa. E que não me apareça o caseiro, pé ante pé, para limpar sei lá o quê e me matar de susto antes da noite. Também não precisava essa ventania de morros uivantes, nem esse frio fora de tempo a me assanhar o medo. Quem sabe um chá agora para aquecer o peito e chamar o sol vespertino ao pátio? Quem sabe a noite se faz azul? Que caia a noite sobre o Vale do Ribeirão. Não é que um soar de vassoura em ação vem do quintal? Dito e feito. Lá está o caseiro a varrer a rampa em meio à ventania. Só pode ser para me assustar. Mas não me assusta. Será que veio conferir se estou só? Será mesmo homem de confiança? Será este lugar um paraíso a salvo da violência reinante? A velha só em seu Valhalla não desafiaria a maldade do caseiro? Esse vento, ai, esse vento, é sonoplastia certa para cena de um crime. Lembra-me o medo que me assaltou naquele hotel em Verona (e ali em verdade havia o risco de estar só). E lá se foi toda a noite na espreita de que o iraniano seco de olhar saliente me aparecesse pelos balcões dos quartos geminados. Sei lá se era medo ou desejo. Mas esse tipo de ambigüidade pertence ao passado. Hoje, nem o exotismo do iraniano me despertaria alguma fantasia. De vez em quando, a geladeira faz um estalido. Já se sabe. Mas bem que uma surdez temporária me ajudaria a passar a noite sem sobressaltos. Os mais apavorantes medos vêm dos sons da noite. Quantas vezes já não acordei de pesadelos em que um bicho horrendo me persegue por conta do ronco dum motor na madrugada? Fechei todas as portas e janelas. A noite enfim chegada não aplacou a lamúria dos ventos. Ao contrário. O gemido das lufadas crescia sobre meu estado d’alma. Havia a opção de me trancar no quarto. Isso não resolveria o problema dos ventos. Mas teria me poupado do medo do escuro que devassa o interior da casa com a planejada permissão das vidraças. Arquitetos valorizam a vista para o verde, sabem que a mata vive no seu desfrute, sem a intenção de assustar mulheres sós. Mas não levam em conta os açoites de uma noite lúgubre que tem as vidraças da sala de estar como aliadas. Ir surda ou sedada para a cama seria sucumbir ao medo. Foi quando ouvi vozes wagnerianas e aceitei o desafio. Já que as primeiras cenas da noite se passariam na sala do meu Valhalla, invoquei a guarda de Brünnhilde. “Die Walküre”, Bayreuther Festspiele, 1980. Ao final do primeiro ato, num dos mais lindos duetos de amor da história da ópera, o revelado amor dos gêmeos Siegmund e Sieglinde desvia meus olhos aflitos das vidraças e faz a sala soturna de Hunding se abrir para um jardim de lua cheia. Segue a zanga de Wotan a calar o vento que agita as colinas. Sua consciência de finitude afugenta os meus fantasmas. Wotan não releva a pena cometida a Brünnhilde, proscrita do Valhalla, condenada a ser só uma mulher. Mas a lealdade de Brünnhilde inunda o coração de Wotan. A força da Walquíria me infunde coragem. Entregue àquela música como se fosse pela primeira vez, minimizei os efeitos da noite na tela dos meus temores. Por fim, foi para mim que Wotan invocou os poderes de Loge. E todo o vale se iluminou. Wotan atende ao pedido de Brünnhilde e carinhosamente nos põe a dormir aqui no alto da roca. No silêncio do sono protegido segue a vida em suas eternas alternâncias, medo, coragem, poder, declínio, fogo, ventos, calmaria, solidão, companhia, verdades, fantasia, noite, dia, crepúsculos cada vez mais belos, obra dos deuses, arte e magia. Itaipava, 30/03/2006

1 comment:

Anonymous said...

Combinha,
leio você e a lamúria dos ventos de sua Valhalla pela segunda vez. Gosto tanto: da força da guarda invocada (Brünnhilde), do humor da surdez temporária e até dos estalos da geladeira.Beijo, Ci.