Tuesday, November 05, 2013

Nos tempos do PCB - capítulo V

Eu era pequena e, intuitivamente, já acreditava na música como elemento propulsor de nosso (bom) senso de humanidade - uma espécie de purificador de sentimentos, uma força agregadora que pode nos levar às melhores ações sociais transformadoras. Tive em família uma boa formação musical. “Brincar de ópera” era programa certo no amplo quintal de nossa casa na rua Pinto Teles, em Jacarepaguá. As encenações de Madame Butterfly eram frequentes. Como mais velha, eu dirigia a montagem, designando os papéis dos meus irmãos, Armando e Henrique, atribuindo-me o papel título, é claro! Não me recordo bem o que fazíamos nem o que cantávamos. Mas tínhamos a partitura da Butterfly mais ou menos sabida e o nosso jardim era um bom cenário para o primeiro ato. Como ocorre entre crianças, o tempo de combinação do que cada um devia fazer era maior do que a brincadeira em si. Mas as cenas da entrada de Madame Butterfly e a do casamento eram o ponto alto de nossa performance pueril.
        
Na levada da política traçada pelo Comitê Universitário do PCP no início dos anos 70, tivemos a música como aliada. Era preciso espantar os fantasmas do AI-5. Uma companheira de codinome Tania tinha acesso ao empresário dos grandes nomes que haviam despontado nos festivais da canção dos anos 60. Assim, nos aproximamos de artistas como Milton Nascimento, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, MPB4 e outros cujos nomes já não recordo. Estes shows passaram a ter evidente caráter político por inspiração das próprias letras das canções.

Lembro-me bem da noite em que lotamos o Café-Teatro Casa Grande fundado em 1966 por Max Haus, Moysés Ajhaenblat, Moisés Fuks e Sergio Cabral, o pai. Orgulhosa de ter participado da produção, fui às lágrimas quando Milton soltou seu vozeirão: “O que será que me dá/ que me bole por dentro, será que me dá...”        http://letras.mus.br/chico-buarque/45156/   

        Das experiências com pequenos shows partimos para algo mais arrojado: a montagem do Showzão que veio a ocorrer no primeiro semestre de 1970. Os caminhos se abriam à medida em que os artistas compreendiam a nossa política. Não era à toa que atuavam gratuitamente. E lá iam com seus instrumentos e toda aquela parafernália de palco, emprestando sua força de trabalho à causa das liberdades. Elis Regina, grávida de João Marcelo, fazia show no Canecão que nos foi cedido para o evento a se realizar numa segunda-feira, o dia livre dos artistas. E tivemos casa lotada numa segunda-feira! Era prova de que a massa estudantil, silenciosa e aparentemente desinteressada da política, abafava no peito o desconforto com a ditadura. E o grito contido explodiu quando Leila Diniz e Ziraldo, os apresentadores, pisaram o palco que logo seria tomado pelos acordes das mais significativas canções da época. E lá estavam Chico, Elton, Paulinho, MPB4, nossos mais fiéis parceiros na frente musical-estudantil contra a ditadura. Até Elis Regina nos brindou com um trecho de seu show. 
   
         Em 1971 encerramos o ano com outro grande show. Lotamos a quadra do Botafogo. Ziraldo pintou um imenso painel que dava o sentido político do evento. Que fim terá levado esta obra? A mim tocou falar ao final. E lá fui cheia de garra. Quem me viu no palco a conclamar os estudantes para lutar pela democracia não poderia supor que, exatamente naquela semana, eu vivia os dramas de minha separação, provavelmente coisa menor se comparada à dor maior de toda a cidade, de todo o país, que era viver sem liberdade de expressão.

        Mais tarde, em 1976, já vinculada ao movimento feminista, com minha experiência no ramo, juntei-me à Mariska Ribeiro e outras companheiras para montar o show “Amelia Já Era?!” Era preciso conclamar as mulheres para refletir sobre sua subalterna condição social. No movimento feminista nossas gestões eram coletivas, não havia estrutura hierárquica, mas não posso deixar de conferir à Mariska a posição de chefe desta empreitada musical. Profunda conhecedora da música popular brasileira e dotada da mais sensível consciência feminista que eu pudesse ter encontrado, Mariska foi determinante para a realização do projeto. De quebra, ficamos amigas para sempre. Mariska também gostava de ópera e, assim, a festa de nossa longa amizade foi completa, só interrompida com tristeza por sua morte em 2004. Este show realizou-se no Teatro João Caetano, antigo Teatro São Pedro – o que abrigava as temporadas líricas antes da inauguração do Municipal em 1909. Caetano disse que ia e, na hora, não apareceu. Em compensação, Jorge Goulart e Nora Ney abriram o evento, empolgando a platéia. Paulinho da Viola fechou a noite com “Coisas do Mundo Minha Nega” (1968), joia de sua criação que também era apresentada nos shows estudantis do Partidão.  

Tudo bem, virei juíza - acho até que estava escrito. Mas, quem sabe, também não teria tido êxito como empreendedora musical?     

1 comment:

Helô Lima said...

Está se tornando um livro da melhor qualidade, Combinha.
Beijos.