Eu era pequena e, intuitivamente,
já acreditava na música como elemento propulsor de nosso (bom) senso de humanidade - uma
espécie de purificador de sentimentos, uma força agregadora que pode nos levar
às melhores ações sociais transformadoras. Tive em família uma boa formação musical. “Brincar
de ópera” era programa certo no amplo quintal de nossa casa na rua Pinto Teles,
em Jacarepaguá. As encenações de Madame Butterfly eram frequentes.
Como mais velha, eu dirigia a montagem,
designando os papéis dos meus irmãos, Armando e Henrique, atribuindo-me o
papel título, é claro! Não me recordo bem o que fazíamos nem o que cantávamos.
Mas tínhamos a partitura da Butterfly mais ou menos sabida e o nosso jardim era um bom cenário para o primeiro ato. Como ocorre entre crianças, o tempo de combinação do que cada um devia fazer era maior do que a brincadeira em si. Mas as cenas
da entrada de Madame Butterfly e a do casamento eram o ponto alto
de nossa performance pueril.
Na levada da política traçada pelo Comitê Universitário do
PCP no início dos anos 70, tivemos a música como aliada. Era preciso espantar os fantasmas do AI-5. Uma
companheira de codinome Tania tinha acesso ao empresário dos grandes nomes que
haviam despontado nos festivais da canção dos anos 60. Assim, nos aproximamos
de artistas como Milton Nascimento, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Elton
Medeiros, MPB4 e outros cujos nomes já não recordo. Estes shows passaram a ter
evidente caráter político por inspiração das próprias letras das canções.
Lembro-me
bem da noite em que lotamos o Café-Teatro Casa Grande fundado em 1966 por Max Haus, Moysés
Ajhaenblat, Moisés Fuks e Sergio Cabral, o pai. Orgulhosa de ter participado da
produção, fui às lágrimas quando Milton soltou seu vozeirão: “O que será que me
dá/ que me bole por dentro, será que me dá...” http://letras.mus.br/chico-buarque/45156/
Das experiências com pequenos shows partimos para algo mais arrojado:
a montagem do Showzão que veio a ocorrer no primeiro semestre de 1970. Os
caminhos se abriam à medida em que os artistas compreendiam a nossa política.
Não era à toa que atuavam gratuitamente. E lá iam com seus instrumentos e toda aquela
parafernália de palco, emprestando sua força de trabalho à causa das
liberdades. Elis Regina, grávida de João Marcelo, fazia show no Canecão que nos
foi cedido para o evento a se realizar numa segunda-feira, o dia livre dos artistas. E tivemos casa lotada numa segunda-feira! Era prova de que a massa estudantil,
silenciosa e aparentemente desinteressada da política, abafava no peito o
desconforto com a ditadura. E o grito contido explodiu quando Leila Diniz e Ziraldo, os apresentadores, pisaram o palco
que logo seria tomado pelos acordes das mais significativas canções da época. E
lá estavam Chico, Elton, Paulinho, MPB4, nossos mais fiéis parceiros na frente musical-estudantil contra a ditadura. Até Elis Regina nos brindou
com um trecho de seu show.
Em 1971 encerramos o
ano com outro grande show. Lotamos a quadra do Botafogo. Ziraldo pintou um
imenso painel que dava o sentido político do evento. Que fim terá levado esta obra? A mim tocou falar ao final. E lá fui cheia
de garra. Quem me viu no palco a conclamar os estudantes para lutar pela
democracia não poderia supor que, exatamente naquela semana, eu vivia os dramas
de minha separação, provavelmente coisa menor se comparada à dor maior de toda a
cidade, de todo o país, que era viver sem liberdade de expressão.
Mais tarde, em 1976, já vinculada ao movimento feminista, com
minha experiência no ramo, juntei-me à Mariska Ribeiro e outras companheiras para
montar o show “Amelia Já Era?!” Era preciso conclamar as mulheres para refletir
sobre sua subalterna condição social. No movimento feminista nossas gestões
eram coletivas, não havia estrutura hierárquica, mas não posso deixar de
conferir à Mariska a posição de chefe desta empreitada musical. Profunda
conhecedora da música popular brasileira e dotada da mais sensível consciência feminista
que eu pudesse ter encontrado, Mariska foi determinante para a realização do projeto.
De quebra, ficamos amigas para sempre. Mariska também gostava de ópera e, assim,
a festa de nossa longa amizade foi completa, só interrompida com tristeza por sua morte em 2004. Este show realizou-se no Teatro João Caetano, antigo Teatro
São Pedro – o que abrigava as temporadas líricas antes da inauguração do Municipal
em 1909. Caetano disse que ia e, na hora, não apareceu. Em compensação, Jorge Goulart
e Nora Ney abriram o evento, empolgando a platéia. Paulinho da Viola fechou a noite com “Coisas do
Mundo Minha Nega” (1968), joia de sua criação que também era apresentada nos shows
estudantis do Partidão.
Tudo
bem, virei juíza - acho até que estava escrito. Mas, quem sabe, também não teria
tido êxito como empreendedora musical?
1 comment:
Está se tornando um livro da melhor qualidade, Combinha.
Beijos.
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