Em certo fim de tarde, Léo me levou a conhecer o camarada
Vinicius. Não era uma reunião, nem um ponto.
Era um papo. Alguns militantes das bases contestavam as diretrizes do Comitê
Universitário. Era o caso do secretário político da minha base. O Léo fora a
uma reunião como assistente e fez o maior sucesso com seu jeito brincalhão e
sua análise política. Não deu outra: o secretário me convocou para um ponto na Praça Saens Peña e me advertiu:
“mantenha-se afastada do camarada Léo. Ele
tem posição contrária à da direção nacional e aquela bagunça que ele faz na
reunião não é normal”. Era o caso de ter indagado: “e o que é normal nesse partido clandestino, nessa sociedade pautada
pelo regime de exceção?” O fato é que, assim como o secretário tentava posicionar
a base contra o Comitê, este, por sua vez, tentava se aproximar das bases. Tudo
a ver com a vida partidária – debates, embates, divergências, luta interna. O
fato é que não gostei do tom do secretário. Mas adorei a conversa com Léo e
Vinicius.
O
Léo transitava bem pelos dois mundos: vida legal como aluno (devia estar se
formando, não sei bem) e clandestina como comunista. Alto, bonitão, andava com
uma pasta de couro marrom, fazendo um tipo mais para mestre do que para estudante.
Sabia despertar o gosto pela discussão política, incentivar o pensamento
crítico e talvez por isto não fosse bem visto pela direção nacional. Léo nos
visitava com frequência no pátio do Instituto de Filosofia, Ciências e Letras/UEG.
Juntava gente em torno de si em animadas tardes, às sombras de generosas
árvores. Aulas de cidadania e política. Não é à toa que ganhou o apelido de
“professor”.
Vinicius
não podia se expor. Era mais visado pela ditadura desde as primeiras horas do
golpe de 1964, quando seu pai, detentor de alta patente na Aeronáutica,
insurgiu-se contra o regime. Nas reuniões, Vinicius brilhava. Ainda jovem, já
dominava o pensamento marxista. Culto, sensível, sedutor, exercia legítima liderança
no Comitê Universitário. Guardo difusa memória daquele nosso primeiro encontro ao
anoitecer. O papo rolou solto e eu, só na escuta, toda prosa com o tête à tête com os dirigentes comunistas.
Embora fazendo o tipo mocinha encantada com os seus heróis, naquele encontro comecei
a entender que o ideal de liberdade socialista não cabia na ortodoxia dos manuais
de um marxismo mal interpretado. A conversa que tivemos me volta à lembrança em
sons de um allegro. E me sinto livre
para preencher os vazios da memória com certa dose de invenção, só para dar
movimento ao relato, sem desfigurar os fatos.
A
certa altura da conversa, o assunto virou para as bandas da música. Acabara de
acontecer o embate entre Sabiá (Tom Jobim e Chico Buarque) e “Para Não Dizer
Que Não Falei de Flores” (Geraldo Vandré) no Festival Internacional da Canção
daquele ano de 1968. “Sabiá” levou o troféu do primeiro lugar. Mas a canção do
Vandré foi consagrada pelo público em gesto de protesto. Pode ser que, enquanto
eles debatiam o resultado, eu já cantarolasse uma das duas canções.
Provavelmente “Sabiá”, musicalmente mais rica, mais lírica, mais ao meu estilo.
Lembro que também puxei o refrão do Vandré: “vem, vamos embora que esperar não é saber/quem sabe faz a hora não
espera acontecer...” Os camaradas gostaram e pediram bis.
Como
escreveu Stefan Zweig em “Maria Antonieta – retrato de uma mulher comum”,
compreende-se o presente através do passado. Nada mais certo. Assim, ao relembrar
meu tempo de vinculação ao PCB, revitalizo minha percepção da política e tento
entender o que está acontecendo agora. É certo que minha visão política tem
origem naquela singular experiência do Comitê Universitário. Os meus princípios
de análise – por serem princípios - bem
se aplicam ao presente. Conquanto não mais atue politicamente e o que eu penso,
portanto, não tem a menor importância, ainda me guio pela ideia da democracia
como um valor universal, algo que nos possa levar a um regime socialista
desatrelado da sociedade de consumo, do império bancário, um regime que saiba
conciliar liberdades individuais e interesses coletivos - algo que o mundo
talvez ainda não conheça e que, de todo modo, não me será dado a conhecer.
A
expressão “o que está acontecendo agora”
foi o título de um documento de análise sobre a situação nacional apresentado
por Vinicius numa das Conferências do Comitê Universitário de que participei. No
“aparelho” havia uma ampla sala de jantar onde os trabalhos se concentravam -
cortinas cerradas por todo o tempo por medida de segurança. A mesa fora
encostada à parede para acomodar melhor a turma. Vinicius puxou uma cadeira
para o centro da sala, posicionando-se exatamente sob o foco de luz.
Espalhamo-nos à sua volta, guardando certa distância. Ele assim criou um
ambiente teatral para sua performance política. Até então, eu não sabia o
quanto Vinicius amava a música de Verdi e que tinha o sonho de participar como
figurante de uma encenação de ópera. A leitura do documento durou quase o tempo
de execução de uma ópera completa, sem que o público desse sinal de cansaço. Feitiços
do camarada Vinicius. Esse documento teve o mesmo fim de outros tantos, pois tudo
o que se escrevia naquela época, inclusive, o jornal oficial do PCB – A Voz
Operária - devia ser destruído depois de lido. Queimar papéis era tarefa
frequente na vida dos militantes. Nossa história existe, então, apenas nas
memórias ainda não apagadas pelo bug
dos neurônios dos que viveram aquela experiência. Fotos como aquela dos presos
políticos trocados pelo embaixador americano, nem pensar. Até hoje, não fomos
notícia. O que não quer dizer que nossa atuação silenciosa não tenho
contribuído à luta contra a ditadura.
E,
assim, a partir daquela naquela noite, fomos “caminhando e cantando e seguindo a canção”, para, um dia, fazer “a hora acontecer”. Léo diz que fomos
derrotados. Não sei se concordo. A concepção de derrota, ao meu ver,
relaciona-se com objetivo de chegar ao poder. De fato não chegamos e jamais
chegaríamos. Dou-me por vitoriosa com o resultado de nosso trabalho: ter enfrentado o
recrudescimento da ditadura (AI-5) com uma política de resistência fundada em
ações que, de fato, permitiram a reaproximação dos estudantes, por exemplo, pelo
restabelecimento da representação de turma, pela reativação de associações esportivas,
com a montagem de shows, semanas de debates, etc. Não havia antes e, creio, ainda não em nossa complexa sociedade condições objetivas para o êxito da democracia avançada por nós pensada.
Derrotados
ou vitoriosos - depende do enfoque - o importante é ter a certeza da amizade
que entre alguns de nós se fortaleceu ao longo dos anos; vínculos que,
democraticamente, sobrevivem às divergências
que eventualmente nos colocam em pólos opostos. Vinicius que depois foi Samuel
e acabou recuperando sua original identidade faleceu em 2012. Valoroso intelectual, pai, avô, amigo,
meu parceiro de ópera e de tantas aventuras; emérito professor, deixou seu nome
inscrito na história da UFRJ e na luta pela democracia neste país. Transformo,
então, a saudade em convivência e, sempre que posso, ao cair da tarde, mando meu pensamento ao encontro de Vinicius. Por mais soberba e poderosa que seja, a morte não nos
priva de tudo...
2 comments:
Ótimo texto, Comba. Nessa época eu não estava na universidade, mas também me encontrava quase toda semana com "Léo", "Vinícius" e outros. Foi um período muito importante para a resistência à ditadura e o futuro das organizações de esquerda -de formação marxista. A opções mais radicais -a luta armada, o foquismo- já tinham sofrido um golpe duríssimo, com muitas prisões e mortes. Era preciso construir outro caminho. E, em grande parte, a resistência democrática defendida pelos estudantes do velho "Partidão" prevaleceu. E junto com ela, foram sendo construídas amizades de vida inteira.
Beijão
Henrique
Obrigada, Henrique. Tenho me divertido ao resgatar essas histórias... Estou certa de que cumprimos um papel importante na luta contra a ditadura. Beijo.
Post a Comment