Monday, October 30, 2006

Sem precisões


Sem nenhuma convicção, você vai acordando e escuta ao longe uma gargalhada. Neste instante se dá conta de que ainda está neste mundo e do quão esquisito é o ser humano. Pense no quanto é estranha a gargalhada! Mais estranha ainda é esta palavra que em nossa língua nomeia o ato, com raiz proveniente de gargarejo, ou melhor, do som de gargarejar. A gargalhada é mais antiga do que o ato consciente de gargarejar para limpar a voz ou a garganta. Então, depois de tanto gargalhar, o ancestral português gargarejou e chamou de gargalhada o ato de morrer de rir dos outros ou de si mesmo (algo, aliás, bastante recomendável). Tudo esquisitice! Mas, esquisitice mor é acordar pensando nestas coisas só porque se ouviu uma gargalhada perdida na manhã de um certo domingo em que se tem de sair para eleger o Presidente da República.
Não desanime. Você está obrigado a acordar porque viver é preciso. Navegar é que não deve ser preciso. Se você resolve conduzir a vida com muita precisão corre o risco de asfixiá-la. Tome cuidado com as rotinas e com as obrigatoriedades, formas de precisão. Tome cuidado com as manias e principalmente com tudo que lhe seja imposto com rigor e determinação.
O voto é obrigatório. Como fazer, então, se há restrições a todos os candidatos? O problema reside na obrigatoriedade de votar, ou seja, na precisão, na exatidão de conduta cívica que lhe é exigida. Absurda é a lei que dá peso idêntico ao voto em branco e ao voto nulo. Se o voto é obrigatório, o nulo deveria ser considerado uma opção. E, assim sendo, os votos nulos não seriam deduzidos para a obtenção dos votos válidos. Deduzir-se-iam tão somente os brancos. Este seria o critério mais respeitoso à liberdade de cidadania.
Mas, o tema aqui não era a cidadania nem era o voto. Ou era? O tema era a gargalhada? Era o ser humano? Era a rigidez das precisões? Sei lá... O tema é sempre a vida, incluídas a cidadania, a estupidez, as precisões... Incluídos o gargarejo e a gargalhada. O tema pode ser toda sorte de condutas inventadas pelo homem. Tomar remédio para dormir e para acordar, pensar de forma binária, eleger líderes, mandar, obedecer, bajular, criar regras e a mania de seguí-las com renitente rigidez.
Quem será mais sábio? O velho que se confina na rotina e se ajusta no seu lugar, seguindo os padrões sociais exigíveis ou o velho (mais provavelmente a velha) que, no alheamento da demência, se rebela, se nega a tomar banho, repele a lavanda pós-banho e pede urgência para o juízo final?
Oh, que falta nos faz uma natural predisposição para a liberdade! Que falta nos faz vocação inata para nos reinventar, assim como natural, embora esquisito, é o ato incontrolável de gargalhar.

3 comments:

CarpeDiemBeHappy said...

Olá,
Vim aqui agradecer a tua visita ao meu blog.

Uma boa gargalhada é sempre bem vinda e sabe bem dar gargalhadas, nem que não seja pelos motivos mais estranhos e caricatos que nos aparecem pela vida fora. Pelo que escreves aqui realmente só com uma boa gargalhada é que se vai levando esta vida.

Pelo menos ainda temos a liberdade de dar uma boa gargalhada!:)

Beijo

Anonymous said...

Oi mãe,
não tinha lido esse seu texto, muito bom, como todos os outros... vamos publicar um livro seu mãe!? Essa será uma tarefa para daqui algum tempo, viu.
É muito difícil exercer a liberdade, feliz da criança, que pode andar de calcinha no meio da rua, que dança em qualquer lugar, feliz da Maricota :)

Comba Marques Porto said...

O bom da liberdade da criança é que ninguém concede. É uma liberdade que se exerce e pronto. Porque é fruto da espontaneidade que, infelizmente, a gente vai perdendo enquanto reprime a criança que há em nós.