Wednesday, October 30, 2013

Nos tempos do PCB - capítulo IV

     A velha guarda do Partido era bamba em clandestinidade. Desde sua fundação, o “clube” (assim chamávamos a organização para disfarçar) contava um breve tempo de vida na legalidade. Sedimentou-se, assim, uma obrigatória cultura de ação às escondidas. Entretanto, a maioria dos militantes das bases universitárias tinha vida legal, comparecia às aulas, cumpria rotinas acadêmicas. Mas mesmo com vida legal, a atuação era clandestina e para tanto, adotávamos, via de regra, a experiência partidária no quesito segurança. E não deixávamos de recriá-la até com certos exageros, algo próprio da nossa faixa etária. O princípio era não saber da vida dos militantes, especialmente da turma da  Direção. Em reuniões e pontos, usávamos nomes de guerra, mesmo entre os que se relacionavam nos campi universitários. Aí, a coisa ficava engraçada, mas fazia sentido – quanto menos informações se tivesse de um companheiro, de uma companheira, menor seria o estrago em caso de prisão. Não se podia garantir a resistência à tortura, assim como não seria justo – e jamais será - condenar quem, nas mãos da repressão,  “entregou” pessoas e esquemas. Cabia agir sempre com cautela e prevenção. 
   
        No setor universitário as medidas de segurança tinham maior relevância na organização das Conferências, nas quais eram debatidas e aprovadas as teses que norteariam a ação futura, bem como eleita a nova Direção. Contava-se com a participação de militantes indicados pelas bases, reunindo-se, assim, um maior número de pessoas, o que desafiava cuidados especiais com os sigilos. Sem contar que devia comparecer à Conferência alguém da direção nacional, quase sempre gente bem mais velha que nós, a despertar sentimento de reverência e curiosidade.

Não lembro de quantas conferências participei. Mas a que talvez tenha ocorrido ao início de 1970 me restou inesquecível. Guardo a lembrança de debates interessantes e muita farra nos intervalos. Nem sei de onde tirávamos aquela esperança, aquela euforia. Talvez por apostar na nossa política de juntar os cacos, reunir os estudantes, nem que fosse em torno de uma associação esportiva. Este foi o eixo da política aprovada na Conferência de 70 que, de fato, rendeu bons frutos.

Como já mencionei, através do companheiro “Gafanhoto”, passamos a frequentar os ensaios da Imperatriz Leopoldinense, na quadra da rua Professor Lacê, que viria naquele ano com o samba-enredo “Oropa, França e Bahia”, tendo como tema a Semana Modernista. Estes encontros em Ramos, ao som da batucada, azeitavam nosso entendimento quanto à necessidade de trabalhar pela abertura democrática. No mais, éramos jovens, gostávamos de andar em bando e de nos divertir. Eis a letra do samba:

1922, OROPA, FRANÇA E BAHIA
Na alvorada de glória
Da literatura brasileira
Quando um marco transformou a velha história
Da arte numa nova fronteira
Dentro da Semana Modernista
Criou a Independência Cultural
Deu plena liberdade ao artista
Desprezando a tradição
Neste verso original
O rei mandou me chamar
Pra casar com sua fia (bis)
O dote que ele me dava
Oropa, França e Bahia
Vibrante, surgiu da lenda um bandeirante
Sob a luz dos pirilampos
Perdidos nos campos
A procura do mar
Sem saber voltar, sem saber voltar
Macunaíma, negro sonso, feiticeiro
Cobra Norato e a rainha Luzia
São personagens do cenário brasileiro
Como a mulata, o café e o vatapá
No Carnaval, o Arlequim e a Colombina
Linda menina, amada pelo Pierrô
Parece o lamento da prece
A voz derradeira da porta-bandeira (bis)
Morrendo de amor
É tempo de amar o que se amou
Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô,
Na alvorada...
O ano de 1970 assim começou na Conferência em tons de promissora alvorada. Em que pesasse a ortodoxia do pensamento comunista por nós herdado, era significativa entre nós a adesão ao conceito de  democracia como um valor universal. Era preciso abrir “nova fronteira” e trazer também o conceito de democracia para dentro da organização partidária, a partir da convicção de que o socialismo deveria ser construído no mais profundo respeito às liberdades democráticas, no esteio do pensamento de Antonio Gramsci, Palmiro Togliatti e Enrico Berlinguer. Se não era de nosso alcance rever a tradicional concepção partidária de viés autoritário pendente para o esquerdismo, apostamos na democracia como estratégia de ação para a universidade, visando recuperar no meio estudantil um sentimento de independência, alguma liberdade, através da arte do diálogo e do entendimento que se fizessem possíveis. E este foi, sem dúvida, o nosso maior acerto.

Nos intervalos das maratonas verbais da Conferência comíamos macarronadas sofríveis que não abalavam o nosso bom humor. E tendo o David Capistrano por perto, alegria era coisa certa. Foi num momento desses da mais livre descontração que nasceu a paródia ao samba que nos unia na quadra da Imperatriz. É claro que participei da redação, aproveitando a vocação que me corria no sangue, sobrinha que sou do Agostinho José Marques Porto (1987-1934), mestre do teatro de revista, gozador, autor de “Ai, Ioiô” em parceria com Henrique Vogeler e Luiz Peixoto e também de divertidas paródias.  Com ajuda da querida Teteca - Maria Tereza Lopes Teixeira -, foi possível resgatar a nossa criação. Eis a letra:  
  
Na Conferência de glória
Da universidade brasileira
Quando o Léo transformou a velha história
Do “clube” numa gafieira
Dentro do “aparelho” requintado
Criou a impressão de bacanal
Deu plena liberdade aos delegados
Começando a intervenção com um grito triunfal

Vitão mandou me chamar
Pra acabar com a fresquete
A direção de setenta vai ser mesmo é de sete.

Vibrante, surgiu Afonso saltitante
Tendo ao lago o Joaquim
Pedindo a palavra sem saber o que falar,
Só querendo agitar, só querendo agitar.
Arlindo Belo entre o velho e o novo
Pede a palavra pra receita aviar
E a Zenir falando alto o tempo todo
 – “Só tem fofoca, o negócio é educar”
(neste trecho, a memória perde duas estrofes anteriores ao refrão otimista):
Setenta, com o Léo na cabeça
O setor vai pra frente
E a nossa política vai avançar
(BIS)
É tempo de esquecer o que passou
Ô,Ô,Ô,Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô, Ô.  
        Na Conferência...


Não me sinto autorizada a explicar os pontos incompreensíveis da paródia, tampouco, a revelar quem é quem nessa história. Traçávamos, sim, uma política de massas, mas o Partido, por força da legislação autoritária, ainda permaneceria por mais de uma década na clandestinidade.           

1 comment:

Helô Lima said...

Colocando a leitura em dia e já ansiosa pelo próximo capítulo!
Beijos.
Helô