Monday, March 21, 2016

A mediação e os caminhos da paz


Nada é tão ruim que não possa ficar melhor, parafraseando a ideia contida no dito popular para positivá-la. Por mais de quarenta anos, segui carreira jurídica abrigada na litigiosidade. Seja na advocacia tradicional submetida à obrigação de defender o interesse da parte assistida, usando de todos os meios legítimos, éticos, legais e necessários para obter a sentença judicial favorável. Seja no tempo do exercício da magistratura trabalhista, cumprindo a prestação jurisdicional do Estado devida às partes litigantes, “batendo o martelo” sobre o ponto em conflito, o que pela natureza do ato, envolve sempre desagradar, ainda que parcialmente, a uma das partes situadas em pólos opostos. Hoje, uma nova perspectiva dá alento à minha força de trabalho: refiro-me à mediação como forma alternativa de resolução de conflitos, prática que por aqui chega como novidade – embora assim já não seja em outros países, como a vizinha Argentina, onde sua prática bem se expandiu nas últimas décadas.

A mediação, enfim, firma-se nos termos da lei como antídoto ao excesso da litigância presente nas salas de Justiça do Brasil. O novo Código de Processo Civil (Lei 13.105 de 16 de março de 2015) incorpora a mediação como etapa do processo judicial (artigos 165 a 175). Não é de hoje, a conciliação vigora na lei processual e na prática dos juízes. A Justiça do Trabalho foi pioneira a partir da CLT que desde 1943 fixou a conciliação como etapa obrigatória do processo. A mediação ora introduzida na lei processual vai além. O mediador não se confunde com a figura do Estado/Juiz. A prática da mediação não se restringe aos profissionais em Direito. Tampouco demanda titulação acadêmica. O mediador funciona como um facilitador da comunicação entre as partes, do que pode ou não resultar a resolução do conflito. Para tanto, deve conhecer e dominar o manejo de ferramentas através de capacitação específica. Ferramentas que ao Juiz é vedado aplicar.

O ponto de partida da mediação – um procedimento oral e informal - é o acatamento do princípio da voluntariedade: só há mediação com a plena concordância das pessoas envolvidas. O procedimento pode ser interrompido ou cancelado em qualquer parte de sua etapa. O resgate da comunicação rompida é um dos objetivos principais no procedimento de mediação, cabendo ao mediador trabalhar tal aspecto, presente em quase todos os casos vivenciados. Por que escrevo “vivenciados” e não examinados ou apreciados? Porque o mediador, ao contrário do Juiz, não aprecia nada, não “examina os autos”, nem “chama o feito à ordem”. Mesmo na mediação judicial os autos não vêm ao mediador e o juiz do processo não será informado do que foi dito nas sessões de mediação (princípio da confidencialidade).

Na mediação, visa-se, igualmente, celebrar a chamada escuta ativa, uma abordagem essencial ao verdadeiro diálogo que precisamos resgatar para melhor viver em sociedade, para buscar sentimentos de humanidade perdidos no império do grosseiro em que se transforma a realidade. De tal modo, os conflitos passam a ser tidos como eventos inerentes ao fluxo da vida. Separa-se a noção de conflito da noção de litígio. Visa-se o reposicionamento dos interesses das pessoas envolvidas, do qual podem surgir as soluções do conflito. Apresenta-se às pessoas uma alternativa ao “ganha-perde” inevitável na esfera da litigiosidade judicial, para ajudar-lhes a construir uma pauta objetiva a ser examinada, do que pode surgir uma solução genuinamente consensual. O resgate da comunicação interrompida é, pois, o vetor do procedimento, por meio do qual se chega ou não ao acordo que, de certa forma, passa a ser secundário se comparado ao efeito transformador da relação que se pode obter através da escuta ativa e da substituição da guerra de posições pelo exame dos interesses e necessidades dos envolvidos. Nada deve ser forçado pelo mediador. A vontade das pessoas é soberana durante a mediação.  

Evidentemente que o Poder Judiciário lá está – deve estar - ao alcance de todos, como forma constitucional de solução de conflitos. E o vemos cada vez mais se aproximar das exigências de uma nova agenda republicana efetivamente condizente com o princípio do Estado de Democrático de Direito fundado em nossa Constituição. A mediação jamais o substituirá. Apenas acena com a possibilidade alternativa de exame dos conflitos com base na recuperação da comunicação entre as partes, de modo a se evitar as obrigatórias delongas dos trâmites processuais e, sobretudo o peso da sentença judicial à qual é inerente o resultado “ganha-perde”. A mediação, ao contrário, não só pode criar um atalho seguro à solução do conflito, como também pode levar as pessoas envolvidas a escolhas refletidas, caminho andado para a transformação de sua percepção sobre o conflito. Libertas da lógica da contenda, as pessoas passam a tratar objetivamente do problema que as colocou em situação antagônica. A mediação é o terreno em que as partes exercem autonomia na busca de solução de seus conflitos a partir do foco em suas necessidades e interesses, pelo qual se pode chegar sem maiores sofrimentos ao um acordo efetivamente pacificador.

Esta forma alternativa de enfrentamento de conflitos deve contar com a colaboração dos advogados. Na forma extrajudicial, as partes poderão ser assistidas por advogados ou defensores públicos (art.10, da Lei 13.140, de 26 de junho de 2015, que dispõe sobre a mediação). Na mediação judicial, as partes deverão ser assistidas por advogado ou defensores públicos, ressalvadas as hipóteses previstas nas Leis 9.099/95 e 10.259/2001, no limites de que dispensam tal assistência nos juizados especiais.    

Outro aspecto importante a ser ressaltado: o acordo resultante da mediação será reduzido a termo e constitui título executivo extrajudicial. Quando homologado em juízo, ganha a eficácia de título executivo judicial, quer dizer, uma vez descumprida cláusula ou condição do acordo, a parte interessada poderá dar inicio à execução em juízo, sem que se volte ao exame dos temas fixados no termo.

Os estudos teóricos e a experiência prática em minha formação como mediadora abrem-me a mente para perspectivas verdadeiramente inovadoras no que diz respeito ao lidar com os conflitos inerentes à condição humana, tais como me foram apresentados na seara da Justiça. É preciso reaprender a lidar com eles, levando em conta a relativização da via judicial. O apego arraigado à utilização da Justiça não se mostrou eficiente no sentido da pacificação de nossa sociedade. Perdemo-nos no excesso de litigiosidade. A mediação nos oferece alternativas a este padrão. Para tanto, as linhas retas e rígidas do processo judicial são substituídas pela proposta de resgate da comunicação e de um exame franco do que seja o problema. É preciso separar a pessoa do problema, como afirma Willian Ury, da Escola Linear de Harvard. Assim, aprender a mediar é um processo de envolvimento com a proposta de pacificação dos conflitos a partir do reconhecimento de sua objetividade. E me vejo a cada manhã mediando com meus conflitos da vez. E tento abrir o diálogo entre as tantas partes de que sou feita, tentando ver o que se esconde nas fissuras da alma e do corpo, para viver o dia que, a cada esquina, me colocará frente a conflitos de todo gênero, internos e externos, mais simples e mais complexos, todos, porém inerentes ao fato de que estou viva, estou em sociedade e trezentos e sessenta e cinco mil coisas não dependem de mim, de minha posição, de minha vontade. Então, que todos os conflitos - os meus, os teus e os nossos - sejam identificados e reconhecidos – primeiro passo. Quiçá, uma vez reconhecidos, nos levem a uma verdadeira conciliação, sem pressões. Oxalá, tal reconhecimento nos permita dar um passo à frente, como sugere a escola transformativa de Bush e Folger (que ainda preciso estudar), para a qual o acordo não é colocado como objetivo principal do procedimento e, sim, a transformação das pessoas em plano integral, a sua sensibilização mais vertical para o caminho da paz nas relações interpessoais e sociais em sentido mais amplo.  

Hoje, fora das atribuições constitucionais da toga, como outros colegas aposentados que andam abraçando o mesmo caminho, sinto-me bem ao me preparar para dizer: “sejam bem-vindos, meu nome é Comba, aqui estou como mediadora...”

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