Recital de Kaufmann: é ponto para São
Paulo!
O evento olímpico que enobrece a
cidade do Rio de Janeiro bem seria propício à abertura das portas de nosso Theatro
Municipal à apresentação do tenor alemão, Jonas Kaufmann, a quem fãs de todo o
mundo concedem indiscutível medalha de ouro. Mas, na categoria música clássica e ópera, a
cidade está bem longe de chegar ao bronze. A anunciada turnê de Kaufmann pela
América Latina contemplou as cidades de Buenos Aires, Lima e São Paulo. Palmas ao
“Mozarteum Brasileiro” pela inclusão do concerto do tenor em sua programação comemorativa
dos 35 anos de atividades musicais.
A Sala São Paulo resulta da
restauração da estação ferroviária “Julio Prestes” para uso da Orquestra
Sinfônica de São Paulo. A iniciativa foi do Governador Mario Covas ao final dos
anos 1990. “O projeto da Sala São Paulo é
um exemplo vivo no qual acústica e arquitetura fundem-se num único corpo que é
a própria sala. Tudo é acústica e tudo é arquitetura”, observa José Augusto
Nepomuceno, consultor de acústica do projeto de restauro e readequação da Sala
São Paulo (vide site da instituição). E como foi bom viver a experiência
estética proporcionada por aquela acústica, por aquela arquitetura – corpo único
perfeitamente adequado à papa fina oferecida
por Kaufmann e seu mestre, o pianista Helmut Deutsch: par perfeito para a execução
do lied (palavra alemã de gênero
neutro que significa canção) em que voz e piano se acasalam para expressar os sentimentos
exaltados pelos compositores, predominantemente, a turma do romantismo alemão.
Em programa muito bem bolado não
faltou a essência do lied em peças de
Franz Shubert e Robert Schumann e, quanto a este, reafirma-se minha convicção:
tudo o que escreveu é sublime e lindo. E não poderia faltar Strauss (o Richard)
com que Kaufmann fechou o programa. Os “Três sonetos de Petrarca S.270”, do húngaro
Liszt, agregaram ao repertório o idioma italiano que reapareceria na sessão do
bis, com as esperadas árias de ópera. Amei as quatro canções do francês Henri
Duparc (1848-1933), minha mais nova e deliciosa descoberta musical.
Penso que no Rio de hoje não temos uma
sala à altura do brilho de tais artistas e dos naquela noite compositores
interpretados. A cada vez que vou ao Municipal, mais me convenço de que a
última reforma empreendida prejudicou a acústica do teatro. O concerto assistido na Sala São Paulo soa-me,
assim como m alívio: não estou ficando surda.
Faz tempo não via uma platéia tão chique
e também tão contida, fria, melhor dizendo. Respeito à pureza do lied ou mero excesso de elegância a
reprimir a espontaneidade da burguesia paulistana? Imagino que no Municipal do
Rio, Kaufmann seria mais calorosamente recebido, como foi neste último fim de
semana no Colón de Buenos Aires, em que apresentado programa idêntico. Seremos
nós, os cariocas e os portenhos, burgueses ou não, naturalmente mais descontraídos?
Mas o excesso de elegância ou de
reverência a conter o público naquele recital não resistiu à sessão do bis, tal
como conduzida por Jonas e tal como recebida por suas fãs, verdadeiras “walkirias”
a abandonar rapidamente seus assentos, a se posicionar estrategicamente junto
ao palco. Chegara o momento da ópera e das liberdades cariocas a temperar a
frieza aristocrática daquela platéia. Ele nos brindou com a ária “l’anima ho
stanca”, de Adriana Lecouvreur (Cilèa), com “Recondita armonia”, da Tosca (Puccini).
E teve a canção “Azulão” (Ovalle/Bandeira), peça padrão de recitais de astros
estrangeiros, como se fosse a única “lied”
brasileira, sem demérito de sua beleza.
É claro que eu integrava a legião das
“walkirias”. Foi quando me dei conta - ele ali tão próximo - era a oportunidade
de mostrar minha tatuagem que lhe diz respeito, feita depois que o vi em Nova
York, em 2014. Puxei a manga de meu casaco chique de concerto, apontando a ele a
frase: “Jonas, mein Sänger”. A mulherada, paulistas inclusive, cercava-me para
saber o que eu havia mostrado a ele. Que “Brünhilde” era essa a atrair para si
o olhar de “Wotan”? Ele sorriu como quem diz: “ah, essas mulheres!” O mais fica
por conta de sua imaginação e de suas perplexidades quanto aos gestos – digamos
– ousados das mulheres, inclusive daquelas que nem os cabelos brancos as
impedem de expressar seus sentimentos. A farra do bis fechou a noite com chave
de ouro. Viva a beleza do lied, viva “Jonas, meu cantor”!
https://www.youtube.com/watch?v=JgkwzM9fMXA
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