Monday, October 14, 2013

Nos tempos do PCB... Capitulo II

Em 1970, no esplendor de minha primeira gravidez, eu concluía a  graduação em Português-Literatura e já integrava o Comitê Universitário do PCB, doravante chamado “Direção”. A edição do AI-5 em 13/12/68 golpeara o movimento estudantil cuja força acumulada nas passeatas já se esvaíra com a queda do Congresso da UNE. O clima policialesco se instalara nos pátios das escolas secundárias e universidades. Havia desconfianças de todo lado. Com o Congresso Nacional fechado, o Estado ditatorial legislava pela via dos decretos-lei, fora os “atos institucionais”. Assim, em 26/02/1969, foi baixado o Decreto-Lei nº 477, que definiu as infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público ou particulares. A regra era clara: considerava-se grave infração disciplinar passível de expulsão (para alunos) e demissão (para docentes e funcionários) a prática dos assim chamados “atos subversivos”, tais como “passeatas, desfiles ou comícios não autorizados”, bem como o uso de “dependência ou recinto” escolar para prática de atividades que viessem a “incitar ou deflagrar” movimento de paralisação ou “contrário à moral ou à ordem pública”. O Decreto-lei 477 feria de morte a representação estudantil, a liberdade de ensino, pesquisa e extensão; atingia os valores maiores da educação como a formação do saber, da cidadania, da cultura e dos mecanismos de troca de experiências através de seminários, congressos, etc. Uma simples conversa de umas três pessoas nos corredores das escolas poderia caracterizar uma atividade subversiva.   

      Por outro lado, parte dos ativistas de 1968 seguiu o caminho da luta armada. Outros propunham a criação de diretórios e centros estudantis “livres”, quer dizer, clandestinos e, por consequencia, distanciados da massa estudantil não organizada. Esta continuava a cumprir suas rotinas escolares mas sem encontrar os espaços de participação experimentados no ano anterior. 

       Assim, enquanto os grupos de esquerda entregavam os estudantes à própria sorte, nós, o “Partidão”, com a Direção do Comitê Universitário eleita eleita ao final de 1969, demos início a uma política de mobilização possível com o objetivo de construir uma ponte de articulações dos estudantes entre si e destes com a sociedade civil, notadamente com as instituições que já se colocavam publicamente contra a ditadura militar, tais como a Ordem dos Advogados do Brasil e a União Brasileira de Mães (dos presos, torturados e mortos pelo regime). Ao nosso ver, era preciso quebrar o silêncio e o medo impostos pelo Estado policial e seus esbirros infiltrados em salas de aula. A nossa política norteava-se, assim, pela compreensão das contradições internas do regime, às vezes muito bem insinuadas nas colunas do Castelinho, no Jornal do Brasil. Era preciso explorar tais contradições e tentar isolar “os malucos”, assim definidos pelo companheiro Léo como os militares da chamada “linha dura”.

        Como já mencionei, começamos a juntar os cacos para avançar. Porém, alguns dos novos integrantes da Direção, como eu, concluíam seus cursos e, logicamente, deveriam se transferir para outros setores de organização de base do PCB. Foi quando cogitou-se de propor a algumas figuras que tentassem permanecer na universidade para melhor implementar a nova perspectiva de mobilização. Algumas de nossas bases mais fortes apresentavam-se de fato desfalcadas, especialmente em razão dos rachas decorrentes das teses aprovadas pelo Sexto Congresso do PCB, ocorrido em 1967. Eu estava presente na reunião que tratou do tema. De repente, alguém me indaga:

- Camarada Lucia, podemos contar com você? Precisamos de quadros na Medicina da UFRJ.
-  Mas eu não sou das ciências, nem das matemáticas, não tenho a menor condição de me preparar para o vestibular de medicina! Vou ter bebê nos próximos dias...
- Compreende-se, camarada.
- Mas... Talvez eu consiga... Quer dizer, quem sabe, eu possa tentar o Direito...
- Nada melhor, companheira! Na base do Caco só resta o Amilcar. Há um trabalho importante a ser feito lá.

O curto diálogo acima reconstituído sugere-me algumas reflexões. Impressiona-me o fato de eu só ter levado em conta o interesse partidário e não ter me consultado, pedido um tempo para pensar e me questionar sobre meu real interesse ou mesmo plano pessoal de passar mais cinco anos em novo curso de graduação, a tal guinada para o Direito. E o que dizer de meu eterno desejo de agradar? Ali pesou muito. Como fui capaz de entregar o meu futuro à decisão de um coletivo partidário, sem mais pensar? 

Minha filha nasceu em dezembro de 1970. E assim, mal saída dos resguardos do parto, lá estava eu a prestar em janeiro o vestibular da Faculdade de Direito da UFRJ. Ocorria naquele ano o último exame com provas discursivas. Fui aprovada sem maior esforço. Juntei-me, então, ao saudoso Amilcar Barroso de Siqueira que já cursava o segundo ano e começamos a remontar a chamada base do Caco. 

      Logo no primeiro semestre, o Diretor da Faculdade, Dr. Miguel Franchini Neto, chamou-me ao seu gabinete e, a portas fechadas, me intimidou: "Eu bem sei quem é você. O que está fazendo aqui?" Num rápido resgate de minha natureza de artista, armei a cara mais ingênua que pudesse apresentar e respondi: - "Estou estudando professor, pretendo seguir carreira jurídica." O homem ficou vermelho de raiva a ponto de explodir. Ou, quem sabe, usando intencionalmente a oratória própria aos juristas, impostou a voz e a carranca para me apavorar, supondo que de lá eu sairia corrida de medo para nunca mais voltar. Ameaçou-me de me enquadrar nas penas do DL nº 477, mas eu não recuei. O Diretor, por sua vez, não repetiu a bravata repressora. Continuei frequentando as aulas, aliás, adorando aquelas proferidas pelo culto, brilhante e gentil professor de Direito Civil, Caio Mario da Silva Pereira. Conheci Leonor Nunes de Paiva, colega de turma do Amilcar e ficamos amigas para sempre. Juntamo-nos a outros colegas e passamos a formar um grupo de resistência. A legendária base do Caco renascia. Pelo menos ali, a política traçada pela Direção rendia bons frutos. E eu, by the way, tornava-me uma advogada. Era só o destino a escrever mais ou menos certo por linhas tortas? Talvez. Algo em comum entre os comunistas e as gestões divinas? Não sei.           

1 comment:

Paula Mello said...

mais um talento, não é Comba? Estava ansiosa aguardando o capítulo dois e agora, o três.