O ano de 1969 chegou com gosto
de ressaca. Era preciso enfrentar as razias do AI-5, construir alternativas de
sobrevivência política. Meu namoro com Raulino prosperara, tanto que inventei de
casar. Casamo-nos. Só no civil, é claro, sem festa, sem a presença dos amigos e
mesmo dos familiares. Apenas as testemunhas: o médico José Faure, sócio de meu
sogro, e sua mulher, Leonor. Era julho. Usei um vestido de lã fina em tom suave
de amarelo, estilo reto, clássico, cintura baixa, saia bem acima dos joelhos.
Após o ofício, devíamos colocar as alianças, o que fizemos meio sem jeito, no
corredor do cartório da rua Dom Manuel, sem qualquer ritual que sempre ajuda a por
as coisas aparentemente em seus lugares. Não é que um das alianças caiu, rolou escada
e quase se perdeu?
O pai de Raulino, S. Miguel, morrera subitamente em abril, vítima de complicações de uma crise de diverticulite. Meu pai viria a morrer neste julho, depois de muito sofrer com o câncer. Seguimos nossa vida de militantes, assumindo a tarefa de driblar a ditadura, sem refletir melhor sobre a precoce perda paterna e sem dar muita bola à nossa vida de casados. Alugamos um apartamento na rua Henri Ford, na Tijuca e, por força das circunstâncias, levamos D. Irene, mãe de Raulino, para morar conosco. Junto com ela veio um amargor em andante lamentoso nutrido pela recusa da perda do marido. Era um luto que parecia se eternizar e, ao jeito dela, se eternizou.
O
nosso novo endereço era um lugar perfeito para abrigar reuniões evidentemente
clandestinas. Passaram-se alguns meses e, em certa manhã de domingo,
esperávamos a Direção. Foi quando um camarada bateu à porta mais cedo:
- Não vai haver reunião. O Samuel caiu. Vocês devem sair daqui o quanto antes.
Queimara-se o novo aparelho, dissolvia-se o lar dos recém-casados e da viúva inconformada. Esta, tomada pelo medo infundido pelo regime, odiava nosso envolvimento com “os curmuras”, como ela se referia aos comunistas. D. Irene tinha uma graça com as palavras, uns ditos próprios que, muitos anos depois, foram por mim compilados num divertido dicionário apresentado à família em jantar em minha casa pela comemoração dos oitenta anos dela. Intensa em tudo que sentia e fazia, D. Irene me incluiu no rol de seus amores incondicionais desde o primeiro dia em que soube do nosso namoro. A separação do Raulino não nos afastou. Aliás, nosso casamento acabou mais continuamos juntos pela vida afora, unidas nossas novas famílias por vínculos afetivos que sempre se renovam.
De fato saímos da rua Henri Ford naquele mesmo dia da prisão
do Samuel e jamais voltamos. Meus irmãos se encarregaram da retirada de nossos
pertences e da devolução do imóvel ao proprietário. Não me lembro para onde
fomos. D. Irene foi viver provisoriamente com uma irmã e o camarada Samuel
permaneceu preso por longo tempo. Não recordo de sol, de praia, nem de
tardes azuis nos meses seguintes à desarrumação de nossa vida conjugal. Também
não sei como, em meio à confusão subitamente instaurada, pude dar conta do ano
letivo na universidade, das rotinas do trabalho como professora primária e mais
as atividades do Partido. Mas lembro de que, a despeito deste cenário sombrio, nossa
política se estruturava, colhendo adesões nas bases, apesar de enfrentar
o repúdio da cúpula diretiva do Partido no estado do Rio de Janeiro. De fato, cada
vez mais nos afastávamos da ortodoxia dos folhetins marxistas para ir ao
encontro da experiência dos comunistas italianos, alentada pelo pensamento de teóricos
como Antonio Gramsci.
Ao começo de 1970, era eleita a nova direção do Comitê
Universitário. De certa forma, compensávamos a ausência do camarada Samuel com
muita dedicação ao trabalho de juntar os estudantes e reinaugurar a
democracia que se fazia possível nas universidades. Aos poucos, nos sentíamos mais fortalecidos e, convenha-se, não há luto - afetivo e cívico - que por muito tempo
encubra o viço da juventude. As elevadas temperaturas do verão já aqueciam nossos corações. Na base da medicina havia um camarada conhecido por “gafanhoto”
vinculado à Imperatriz Leopoldinense que neste ano se apresentaria com o samba “Oropa, França e Bahia”. Assim, sem maiores
pretensões políticas, passamos a frequentar os ensaios, temperando com alegria a seriedade do compromisso com a militância. Este samba entrou em nossa
história pela paródia que dele fizemos. Primeiramente, lembremos o samba
original - http://letras.mus.br/imperatriz-leopoldinense-rj/473085/ A
paródia e o que veio depois a marcar nossa atuação em 1970, fica para o próximo
capítulo.
4 comments:
ohh, acabou, vou esperar ansiosa pelo próximo capítulo!
Paula, querida, vou contando aos poucos para garantir a diversão por mais tempo... Beijos e saudades.
Comba querida, senti falta , muita falta daquela nossa passagem pelo programa "Minha turma é da Pesada", aliás, um fiasco, com aprendizado rsrsrs. Sempre tive vontade de contar esse história,mas esse seu blog é perfeito pra isso. Não acha?
Imagine a trabalheira que tivemos, durante 7 semanas pra perder pros ratos de praia do leblon( assim nós os chamávamos) As histórias são pra lá de divertidas. Cada prova era uma verdadeira aventura. No fim, em segundo lugar, ficamos com um prêmio que era um calhambeque velho, que meu irmão comprou para ajudar e na primeira volta pela lagoa , pifou...Muito bom!
Salve, Beth!!! Você fala daquela gincana, não é? Que loucura! Vou contar isso, com certeza! Beijos.
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