Monday, October 07, 2013

Nos tempos do PCB... Capítulo I

Nasci em 1945 num sítio da zona rural da então capital federal, quando os beligerantes mundiais assinavam o armistício. Venho de berço híbrido. Do lado paterno, uma família tradicional de origem portuguesa com ramificações sólidas na Bahia e no Rio de Janeiro. Do outro, sou Minas Gerais. Sou minha mãe e suas narrativas sobre a fazenda onde nasceu e foi criada pela avó que lá servia. Sou minha mãe e seus mistérios abrigados em fissuras que também são minhas até no significado etimológico de meu nome.

Mas devo saltar no tempo para adequar o relato ao seu objetivo. As histórias da infância, além de mais remotas, são já impressões muito difusas. Fora a minha precoce e promissora carreira na ópera, não teria muito mais a contar. 

Meu pai, jornalista, cronista de turf e de música, era eleitor de Carlos Lacerda. Nas horas antecedentes ao golpe militar, reuniu mulher e filhos à mesa do jantar para alertar quanto ao perigo comunista, sublinhando a iminência do fim ao direito de propriedade privada que nos levaria a ter de compartilhar nossa casa com outra família talvez mais numerosa do que a nossa. Confesso que fiquei mais curiosa do que assustada com o tal do comunismo. Mas, imersa em devaneios de artista domesticada para ser esposa com salário para os alfinetes, não me interessava por política. Em 1965, tornei-me professora primária, mas já acalentando um certo desejo de contestar o destino que me fora traçado por meu pai. Como todas as meninas daquele tempo, eu sonhava, sim, com o casamento mas também me sentia atraída pelos estudos. Até porque, meu pai era um homem de cultura, não sendo compreensível que me imaginasse no fim da linha dos estudos só por ter obtido o diploma do Curso Normal. Contra a vontade dele, ingressei num cursinho situado na rua Haddock Lobo, passei no vestibular e dei início à graduação em Português-Literatura na Universidade Estadual do Estado da Guanabara. Era o ano de 1967. Eu saia para o trabalho quando o Sol despontava trás os montes de Jacarepaguá. Voltava exausta no meio da tarde. Tinha curto tempo para preparar a aula do dia seguinte e correr para a Faculdade. 

Apesar das dificuldades com a dupla jornada de trabalho e estudos, eu ia bem na literatura, incentivada que fui por bons professores como Ivo Barbieri, Dirce Cortes Riedel. O destino pensado por meu pai não condizia exatamente com certa vocação para a coisa pública que a universidade em mim despertava. Nas aulas fervilhavam debates filosóficos relacionados ao campo da análise literária. Eu me via diante de novas descobertas. Era como se voltasse a viver as emoções dos meus tempos de atuação nos palcos da ópera.    

Meu primeiro contato com o PCB deu-se através de Raulino Oliveira, meu namorado. Como operário da Petrobrás ele já era vinculado ao partido e também ingressara na UEG para cursar Filosofia. Entre amores, sessões de cinema de arte, reuniões e calorosas discussões filosóficas, eu ia ampliando minha cidadania.

No primeiro semestre de 1968, para decepção de meus professores, troquei as aulas pela agitação no pátio da faculdade e pelas passeatas nas ruas do Centro. Em seguida, fui eleita por minha turma para concorrer à representação do Instituto de Filosofia Ciências e Letras da UEG na delegação ao Congresso da UNE. Restaram ao fim quatro representantes. E lá fui eu para o Congresso de Ibiúna, sem imaginar que a aventura, tal como concebida pelas organizações de esquerda que dominavam a UNE, fosse resultar em prisão. Meu pai já sofria as agruras do câncer que o mataria no ano seguinte. Meus irmãos contam que a toda hora ele perguntava por mim. “A Comba fugiu de casa? E o Raulino, por onde anda? Vocês estão obrigados a me dizer a verdade.”
Se cheguei a São Paulo como a menina tímida que ainda era (vai ver que um pouco ainda sou), no Presídio Tiradentes, fichada, trancada em cela de presos comuns adaptada para receber estudantes, tornei-me mulher. Lá completei meus 23 anos. Passados uns trinta dias, já no Rio, fui solta, mas respondi a processo. Muitos anos depois, fui em busca de certidões das auditorias militares por ter sido aprovada em primeiro lugar no concurso para a magistratura trabalhista. Por sorte e obra dos advogados que no Rio assistiram os estudantes presos – Modesto da Silveira, Oswaldo Mendonça e Humberto Jansen Machado -, nada mais constava nos registros da Justiça Militar. Pude então tomar posse no Tribunal Regional do Trabalho.


Permaneci vinculada ao PCB de 1968 até 1979, quando pedi “licença-maternidade” e não mais voltei porque minha adesão ao movimento feminista já me inundava de um sentido de autonomia e de livre pensar que viria a se tornar cada vez mais incompatível com as fidelidades partidárias. Até 1975 atuei no Comitê Universitário, quando fiz minha “pós-graduação” em política, formação em cidadania e consciência  democrática. Muito do que hoje sou e penso devo a este rico tempo de convivência com figuras inesquecíveis, algumas das quais até hoje fazem parte de minha vida. Graças ao PCB, terminei o ano de 1975 graduada em direito pela UFRJ. Como assim? Algum comunista teria me obrigado a largar as Letras e me tornar advogada? Não. Nada disso. Concluí regularmente meu curso na UEG. O Direito foi escolha minha. Mas será que inteiramente minha? Aguardem o próximo capítulo.    

3 comments:

Paula Mello said...

ansiosamente!

Um Outro Brasil said...

Comba,
Quando você foi presa em Ibiúna, acabamos dizendo ao papai que você tinha viajado com a família de uma amiga, que tinha sido tudo de repente e você não teve tempo de se despedir. Ele acreditou e ficou mais tranquilo. Preocupados ficamos mamãe, Armando e eu. A polícia rondava a casa. Achávamos que seríamos presos também. Numa noite, um carro ficou algum tempo estacionado quase em frente do nosso portão. Corajosa, mamãe dizia: "-Polícia na minha casa não entra, que eu não deixo! Pego o cabo de vassoura e parto pra cima deles!"
Explicamos a ela que aquele tipo de "polícia" não tinha medo de cabo de vassoura, mas ela batia o pé. Não derrubaria a ditadura, mas acho que racharia o crânio de algum meganha.
Beijão
Henrique

Helô Lima said...

Não quero perder um capítulo. Que talento para escrever você possui, Combinha!
Beijos.
Helô

Henrique, adorei a história de sua mãe :)))